Tenho uma anatomia vínica que já me levou ao fim do mundo, ao nariz do mundo, ao joelho do mundo e ao calcanhar do mundo, aonde retornei para resgatar o Cidadão e o Cidadelhe das arcas encoiradas onde resfolegamos memórias.
Foi quase ontem que me sobressaltou o Rufete, conheci-o em 1997 – no Petisco e hoje deu-me ganas que me lembro como afora ontem. O Carlos Leitão, com quem fiz uma lendária emissão de rádio a 1 de janeiro de 2004 e me apresentou em primeira mão o Monte D’Oiro, lembrou-se de fazer um vinho que arrancasse às mandibulas do esquecimento 60 almas. Lembro-me, vagamente é certo, de ver o mosto no lagar da pedra, tapado e coberto e de um dia lá ir deitar-lhe enzimas, creio que vindas da padaria… E vi, e abriguei-me que o sol brilhou, ao Pálio, a 26 de outubro de 2003, dia em que o famigerado vinho teve festa.
1.333 garrafas apadrinhadas e rotuladas por José Saramago, que nunca resgatou esforços para que Cidadelhe fosse mais do que uma paragem nessa “Viagem a Portugal”. Houve festa, o Pálio saiu à rua, tive dez sublimes minutos de boa conversa com um homem elevado, vertical e consciencioso do que letras encarreiradas, e espartanamente pontuadas, podem fazer por terras obliteradas. «A grandeza do granito, a rudeza das gentes, a nobreza dos corações», terá sido assim que logo ali, nobilizados e felizes, desenrolhámos a primeira destas garrafas primorosas que nos trazem reencontros. Lembro-me disto porque me perco pelo Rufete e porque o vinho teve enologia dada pelo Magalhães Coelho, um lendário homem de muito saber, que eu mal conheci, mas que deixou prole no Dão que amou como ninguém, o que torna as Beiras na grande tanoaria deste profícuo Portugal.
E ele “há acasos que valem por vidas”. O ano passado, na feira medieval de Pinhel, voltei a descer para o Douro e já subia a margem quando virei à direita. E lá no alto, guardados pelas cruzes eu e 3 anciãos esgaravatámos memórias, falámos do Pálio, de Saramago e do Vinho. Que ainda tinham sobrado umas garrafas. Trouxe uma, reforcei o almanaque, conciliei-me comigo e abandonei a botelha na escassa garrafeira que se esconde por baixo das escadas de minha casa. E hoje, depois do Rodolfo Queiroz me apitar no Rufete e sabendo eu que os dois Carlos que porfiam no Ribeiro também o apreciam, virei-me a ele. Abri-o a meio da tarde, liguei o forno, cozinhei com o Afonso enquanto lhe contava a história que nos aperitivou o refeiçoar.
Mas o destino, um avaro dos devires, voltou a traze-lo sobre a mesa nesta semana em que todos juntos, em nome das desgraças que nos tolhem, nos encontrámos na mesa do Firmino. Mordíamos ovos verdes, trincando pastéis de bacalhau quando, esperando couve salteada e feijão pequeno em mar de marmotas, o vejo bem acima da minha cabeça. Aqui mesmo nesta que nos Aguarda sempre a cada regresso.
Um valente vinho “evocador de uma paisagem, de um sentido profundo da vida”. Diria o escritor de quem só não tenho saudades porque olho o ganapo e vejo futuro. Assim a Anita me dobre os anos que teremos “um arco de vida sustentado sobre dois pilares”. A Cidadelhe, à, minha, Beira e a vós. 963!
Por: Amadeu Araújo
* jornalista