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O inferno em Santa Comba

Testemunho

Uma viagem de comboio como tantas outras, tudo tranquilo, exceto a algazarra dos jovens, em grande número, estudantes a regressar a Coimbra, após o fim-de-semana em família. Paragem em Sta Comba, mais demorada que as outras, até que o revisor avisou que o comboio não iria partir. A linha estava cortada mais à frente, antes de Mortágua.

Ao longe podiam avistar-se os incêndios no alto dos montes. Longe, sem qualquer perigo, comentava-se no cais da estação onde se viam centenas de jovens, alguns estendidos no chão, com as mochilas a servir de travesseiro. Aguardava-se calmamente o reinício da viagem. Quase sem se dar por isso, o vento aumentou de intensidade, passando a rajadas fortes e as chamas que antes pareciam tão distantes aproximaram-se num ápice da estacão. O fumo e a fuligem tornaram o ar irrespirável, da amena cavaqueira, passou-se aos gritos, aos telefonemas em lágrimas para as famílias. As casas à volta da estação desataram a arder, qual palha seca no fim do Verão. Correrias, gritos, choros, desorientação total. De repente, houve ordens para abandonar o comboio, o local que, para a maioria das pessoas, parecia o mais seguro. Um autocarro conseguiu chegar ao largo da estação, correria desenfreada para apanhar lugar. Alguns segundos para encher e seguiu, mas ficaram algumas centenas.

Os que ficaram atravessaram para o outro lado das linhas do comboio, parecia ser mais seguro. Em boa hora, pois no local onde antes tinha parado o autocarro as chamas lavravam com altura impressionante, vendo-se o vento empurrar as folhas incandescentes por cima do comboio, incendiando o mato para o outro lado, precisamente para onde as pessoas tinham fugido. Uma e outra vez, o autocarro vinha recolher pessoas, mas o fogo aproximava-se das pessoas que ainda restavam, um grupo reduzido, que já não acreditava noutro regresso do autocarro. Choros, orações, despedidas emocionadas, gente desconhecida abraçada, e a estrada por onde deveria vir o autocarro que parecia uma pista incandescente.

Vi pessoas desesperadas a pedir telemóveis emprestados para falar com as famílias, nem se lembrando que não sabiam de memória os números para onde queriam falar. E o fogo a escassos metros sem haver já para onde fugir, até que, qual aparição, no meio daquele inferno de fumos e labaredas, surge o autocarro que haveria de salvar aquelas pessoas que já se tinham conformado com o destino. Agradeço a este bravo motorista, ninguém lhe viu a cara, no meio daquela negridão do fumo. Ainda há heróis, anónimos, humildes, que não serão condecorados no 10 de Junho. Reavivei a minha fé no ser humano. Não foi o Inferno de Dante, mas foi o Inferno em Santa Comba.

Norberto Borges Domingues

Sobre o autor

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