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Se ninguém estiver a ver podemos ser humanos

Opinião – Ovo de Colombo

Quando o corpo sente uma emoção espontânea a natureza pede-nos para explodir, mas essa explosão não conhece forma, tamanho, contorno ou espessura (e muito menos hora). Tão depressa pode chegar como um assaltante, que entra sem bater à porta para provocar todos os estragos possíveis, como pode ocorrer da forma mais silenciosa quando à noite te escondes debaixo da cama para encarar o teu próprio sismo, um sismo que te atira para os nenúfares. E aí, nesse esconderijo tecido em segredo, esperas que te venham dizer que tudo passou, que tudo há-de fluir como o rio, ou se não fluir, haveremos de juntar todo o nosso dinheiro para fugirmos, tal como a Joni Mitchell nos ajuda a sonhar: «I wish I had a river I could skate away on».

É, pelo menos, esta a mensagem principal de “Não-Humano”: «Tudo passa». Mas não se iludam, o tempo também teme, o tempo também corrói, e com ele leva toda a inocência das pontes que outrora se erguiam para nós como abraços meigos. Yozo (narrador de memórias), que até as refeições questiona, nunca chega a compreender o que verdadeiramente move o ser humano. Será o amor? Será o sexo? Será a revolta? Será a ideia do amor, a ideia do sexo e a ideia da revolta? Ou será simplesmente a luta pelo pão de todos os dias?

Já no que toca às mulheres, as questões acentuam-se, pois não capta os corações-pássaro que lhe entram pelo quarto adentro. Não interpreta os seus signos, que o desgastam mais do que uma minhoca. Não percebe que fantasmas o Takeichi indagara para lançar a profecia: «As mulheres vão-se apaixonar por ti». Enquanto esse presságio vai e não vem, Yozo aproveita a farsa até que o pincel e o balde de tinta venham falar com ele. É nesse momento que num jogo de esconde-esconde deixa escorrer toda a sua vulnerabilidade e mostra que algumas sensibilidades não foram feitas para conhecer a luz do dia, em vez disso aprendem a andar silenciosamente em bicos de pés, para que ninguém venha fazer troça.

A humanidade amedronta-o, e se me dessem a possibilidade de relacionar o seu rosto a uma cor estou certa de que o associaria ao preto – a cor em que alguns vão morar antes de terem de se sacrificar à sociedade, a cor que vive na borda e que nunca é ouvida, até perceber que há um igual a ele. Mas quando percebe? Num jogo de antónimos? Na brincadeira com os feijões? Ou no momento em que mergulha no abismo com a única mulher que amou?

Se o livro se chama “Não-Humano” também poderei dizer que esta é a não-história, o vulto que, ao andar pelas ruas, coleciona segredos porque a verdade é violenta demais. Peregrino das suas fugas arrasta-se sem prazer algum. E o que sobra dessa viagem que engana o corpo para depois se desculpar à mente? A morte? A salvação? Já li a história duas vezes e sempre que penso nisto imagino uma lágrima cosida do avesso porque deitada nunca soube estar. Amanhã escreverei melhor sobre Yozo. Amanhã parece sempre um dia melhor para escrever, porque afinal tudo continuará a passar. «I wish I had a river I could skate away on…».

Melanie Alves

*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

**Pode visitar: www.aosomdapele.tumblr.com

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