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Vindimário

1. Vejo, de longe, a comovente agitação da campanha eleitoral na minha cidade. O único empreendimento que junta o calculismo e a generosidade, a desfaçatez e a inocência, as palavras fortes e as nunca confessadas, o clero regular e as ordens mendicantes. No fundo, a aparência sazonal da chamada vontade popular, em busca dos seus personagens. Dos seus engodos. O momento em que as tropas se reagrupam, a pacata ordem se restabelece, as ambições saem do armário. No meio da procissão, sobressaem alguns seres luminosos e esclarecidos. Tudo o mais é o que todos sabemos. E quase todos fingimos ignorar.

2. O bobo é essencial na política. Ernst Jünger, em “Eumeswil”, não quis privar o Condor de ter o seu. Na verdade, é o bobo que resgata o monarca, tirano ou não, da demência de um poder sem freio. O bobo só ocasionalmente depende da boa vontade do soberano. Não o segue como uma sombra, mas como uma candeia. O bobo não deseja, mesmo secretamente, a aniquilação do monarca. É mais um terapeuta privado, que, num role play absurdo, lembra que o poder é irrisório se não for divertido. No fundo, o bobo é uma subespécie do anarca de Jünger. Mantendo uma relação objectiva com o poder, transfigura-o. Toda a gente se refere com apreço aos checks and balance, ao equilíbrio de poderes. Mas haverá maior contrapeso à tentação (demasiado humana) do poder absoluto, do que a farsa que lembra a sua efemeridade e contingência? Um governante que não dispensa um bobo tem a garantia da sua sensatez. Mesmo que se trate de um tirano. Um déspota acompanhado de um bobo não é para levar a sério. Ou então, talvez isso o torne ainda mais temível. Depende da perspectiva. Seja como fôr, o bobo funciona como uma espécie de demiurgo. A voz da razão disfarçada de nonsense. A sua função, digamos, humanizadora, foi imortalizada no ‘Rei Lear’. Quem não se lembra? Hoje, os políticos estão obrigados ao sorriso. Alguns ensaiam um humor tímido. Outros riem não se sabe bem porquê. Um bobo dispensá-los-ia, com vantagem, desse esforço inglório.

3. Persiste esta misteriosa ideia de que as Câmaras devem ‘criar’ empregos. Não se sabe muito bem o fundamento deste wishfull thinking, mas aqui ficam algumas achegas para acabar com ele. Ponto prévio: as autarquias não fazem nascer empregos como quem planta feijões. O que fazem, como ninguém, é manter uma bolsa de empregos e cargos, oferecidos em leilão aos apaniguados políticos. Essa bolsa tem a configuração de uma matrioska. O seu interior desmultiplica-se ad nauseum. Confirmando uma tese dos antigos de que o centro está em todo o lado. Neste caso, encontra-se no infinito. Contribuem assim, à sua maneira, para a criação de empregos. Os seus. Mas nem por isso aumentam a empregabilidade nos respectivos concelhos. Por outro lado, só em economias planificadas incumbe ao Estado intervir directamente na produção de bens e serviços. Num estado democrático com economia social de mercado, qual o papel reservado às autarquias para estimular a economia local? Gerar atractividade. Simplificar processos. Ser agentes facilitadores da competitividade. Saber vender as vantagens comparativas da região. Mas isto dá trabalho. Requer profissionalismo. Persistência. Implica conhecimento. Pressupõe o risco.

4. Os intelectuais não foram feitos para ocupar o poder. E nem sequer para serem os seus oponentes, mas sim o seu contraponto. É da natureza das coisas. Dramático? Nem por isso. Mesmo os chefes da máfia mais conhecidos nunca dispensaram os seus Consiglieri. O cinema acrescentou os psicanalistas, mas só por exigência narrativa. Os intelectuais não lidam bem com as exigências práticas do jus imperii. Mas nem por isso ficaram arredados do poder. Bem pelo contrário. Um tirano sempre se rodeou de um mentor, ou de uma consciência falante, Os monarcas avisados nunca dispensaram o histrião. Alexandre teve como mestre Aristóteles. Napoleão nunca chegaria onde chegou sem os conselhos do astuto Talleyrand. Isabel I só conseguiu sobreviver às conspirações católicas graças à vigilância de Walsingham. Voltaire inspirou Catarina da Rússia e Frederico da Prússia. Almeida Garrett precipitou a revolução de Setembro e foi um dos autores da constituição de 1836. E por aí adiante. Nem mesmo os casos de Sir Thomas More, executado por ordem de Henrique VIII, e Cícero, morto pelos esbirros de Marco António, são excepções à regra. Simplesmente aconteceu que as razões de Estado se sobrepuseram às suas. Motivo? Os intelectuais conseguem perceber os mecanismos do poder como ninguém. Os mais cínicos tornam-se assessores. Os mais loquazes tornam-se comentadores. Os mais esforçados constroem tratados, edifícios de exegese, sistemas filosóficos acerca da sua natureza. Os mais doutrinados ainda se chegam à frente, provando um cheirinho. Mas rapidamente se desiludem, transformando a decepção em azedume guerrilheiro. Veja-se o caso de Pacheco Pereira. Outros entram e saem, mas sem nunca sujarem as mãos: Benjamim Franklin, Alexandre Herculano, Malraux. Ser líder político está muito para além da política convencional. Abrange realidades como chefes de grandes organizações criminosas, chefes militares insurrectos, teocratas, etc. Seja como for, em todos eles recai a terrível responsabilidade de tomar decisões. Ora, um intelectual não suporta esse peso. Desenvencilha-se dele, a todo o custo. E coloca-o em cima de alguém, para em seguida lho aligeirar.

Por: António Godinho Gil

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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