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Gardunha desfigurada pela fúria das chamas

Serra da Gardunha foi palco de um dos incêndios mais devastadores de que há memória na Cova da Beira

O verde da Serra da Gardunha deu lugar ao negro. São hectares queimados a perder de vista entre o concelho do Fundão e o de Castelo Branco. O incêndio que deflagrou na madrugada do dia 13 em Casal da Serra, no Louriçal do Campo, propagou-se pela encosta e dividiu-se em várias frentes que entraram sem pedir licença na Soalheira, Souto da Casa, Alpedrinha, Castelo Novo, Alcongosta e Vale de Prazeres, já no concelho do Fundão.

O fogo não deu tréguas durante três dias e quando terminou os habitantes regressaram à “serra queimada” para fazer o levantamento dos prejuízos. Na entrada sul do Fundão, à direita, palmeiras rodeiam um terreno com cerejeiras. Do outro lado, uma placa indica Alcongosta, a Capital da Cereja. Mas agora na encosta o negro da terra ardida coloca em segundo plano os pomares de cerejeiras. «Foi o caos, não tínhamos para onde nos virar», recorda Miguel Batista, presidente da Junta. O fogo passeou-se pela vila e deixou para trás «a destruição completa» do pinhal. «Não temos um metro quadrado sem ser área ardida», lamenta Miguel Batista, adiantando que aquela parte da Gardunha estava limpa: «Isto é a prova de que nem limpa escapa», desabafa.

Mas o que falhou no combate a este incêndio? O autarca garante que faltaram meios. «Nas primeiras horas não havia nada. Foi mesmo deixar arder», refere, constatando que «hoje em dia salvam-se as casas e deixa-se o resto». Agora, o caminho é longo e Miguel Batista assegura que «há muita coisa a fazer», mas sobretudo «temos que nos unir para não deixar esquecer» este fogo.

Resolver com «tempo e planificação»

Percorrendo a EN18 em direção a Alpedrinha, um cruzamento à esquerda direciona-nos para Vale de Prazeres, onde se viveram dias «de grande aflição e tormenta», apesar das chamas não terem queimado tudo quanto havia até à zona habitacional. «Quando o fogo se aproximou mobilizámos os nossos meios, como tratores de cisternas com depósitos de água e grades de discos», afirma o autarca José Silva. Contudo, as chamas progrediram e nem a angústia da população as detiveram: «Em traços gerais, arderam palheiros, dezenas de hectares de pastagem e algumas hortas agrícolas», enumera o presidente da Junta. O fogo consumiu também «quilómetros de vedação, linhas telefónicas e algumas placas de sinalização vertical de trânsito».

José Silva acredita que tudo se resolverá com «tempo e planificação», mas por agora há pelo menos uma situação mais urgente: «Temos um casal francês cuja primeira habitação foi destruída e é preciso ajudá-los», apela o autarca. «Este incêndio nunca deveria ter chegado à nossa freguesia nem às outras», critica o autarca, para quem é preciso adotar medidas preventivas como a «criação de acessos, de linhas divisórias e de faixas de gestão de combustíveis». Antes disso, o edil considera que o Governo tem que assumir um papel ativo: «É necessário o correto ordenamento florestal e é urgente a obrigatoriedade real de limpeza dos terrenos por parte dos proprietários», defende José Silva.

Além disso, o presidente de Vale de Prazeres não esquece um pormenor gritante quanto aos meios de combate. «Os meios no terreno são notoriamente insuficientes. E não pode haver espaço para falhas de comunicação, nem do SIRESP», denuncia. Apesar daquela zona ser de difícil acesso, José Silva não esconde o descontentamento pelo facto das autoridades não ouvirem os autarcas locais, «que são quem conhece melhor o terreno». «Eu solicitei aos bombeiros que me acompanhassem para eu os dirigir pelo melhor acesso, da maneira mais curta e rápida para atacar frentes de incêndio, mas fui dispensado dessa sugestão», lamenta o edil.

«Não duvido que foi mão criminosa»

Alpedrinha também não escapou à fúria das chamas. «A violência com que o fogo subiu e desceu a serra deu para perceber que iríamos ter uma tragédia», lembra o presidente de Junta. Carlos Ventura destaca «a bravura do povo de Alpedrinha» neste momento de aflição, pois na ausência de meios, os habitantes tudo fizeram para evitar que o fogo se propagasse. «Três pessoas ficaram feridas, duas nos braços e outra em grande parte do corpo, encontrando-se internada em Coimbra», adianta Carlos Ventura a O INTERIOR.

Mas nem o esforço dos populares e dos operacionais evitou que o fogo tornasse a Gardunha num inferno. Das casas devolutas que arderam a quintas, pomares e vedações, o autarca de Alpedrinha garante que os prejuízos são «muito avultados». «Tudo o que era matéria combustível ardeu. Houve até uma empresa – a Beira Baga – que viu algumas das estufas serem destruídas», indicou o presidente da Junta. Quanto a realojamentos, Calos Ventura fala em dois casos: um casal que vivia numa roulote e uma senhora que teve que ser realojada na Misericórdia local. «Não tenho dúvidas que este fogo teve mão criminosa. Do outro lado da serra o incêndio estava muito violento. Isto foi feito sabendo que os meios estavam concentrados num sítio e que dificilmente chegavam aqui de forma rápida», conjetura Carlos Ventura, que partilha a opinião de que «os meios são escassos».

Quanto ao futuro, o presidente de Junta sublinha que o «importante é aplicar no terreno»: «Se o povo é capaz de fazer, os que estão lá em cima mais obrigações têm de fazer. Que se deixem de conversas e de plenários e façam, porque já está tudo mais que estudado», declara.

«O fogo andou por onde quis»

Na aldeia histórica de Castelo Novo, que chegou a ser evacuada, os prejuízos são incalculáveis e o presidente da Junta garante que os agricultores estão a sofrer bastante as consequências do fogo: «Ficaram sem nada para alimentar os animais», alerta Manuel Domingues, adiantando que na freguesia há cerca de 300 cabeças de gado. «Foi uma catástrofe a cem por cento. Ardeu tudo menos a aldeia», constata, sublinhando que «o fogo podia ter sido extinto muito antes» de chegar às freguesias vizinhas se houvesse meios suficientes para o combater.

Quando as chamas passaram o limite de São Vicente da Beira e chegaram a Castelo Novo, Manuel Domingues diz que os operacionais «pouco» puderam fazer: «O fogo andou por onde quis porque ninguém o conseguiu apagar», queixa-se. O edil deplora ainda que quem tem o comando das operações não conheça o terreno: «Quem anda no terreno são os bombeiros e sem autorização dos comandos não atuam, nem vale a pena dizer-lhes para irem para ali ou para além», afirma o presidente da Junta.

Conta “Gardunha Solidária”

A Caixa de Crédito Agrícola, com o apoio da Agência Gardunha 21 e do município do Fundão, criou uma conta solidária para apoiar as vítimas do incêndio.

A conta foi dotada com uma verba inicial de 10 mil euros e o valor angariado destina-se à reparação de danos com impacto direto na economia familiar das vítimas e serviços básicos, subsistência imediata de explorações agropecuárias ou outras atividades económicas e reposição de equipamentos dos bombeiros ou da Proteção Civil, adiantou a autarquia. Os interessados poderão contribuir através do IBAN PT50 0045 4020 4029 1377 3083 4.

Governo decretou estado de calamidade pública

Face à dimensão da área ardida e às condições meteorológicas registadas após o incêndio, a Comissão Municipal de Proteção Civil determinou a manutenção da Emergência Municipal. Já a Câmara do Fundão solicitou formalmente ao Governo que fosse decretado o estado de calamidade pública de forma a «serem assegurados os meios e os recursos financeiros ao concelho do Fundão», justifica-se num comunicado.

Fundão sem Plano Municipal contra Incêndios

Entretanto, a associação ambientalista Quercus anunciou que mais de um quarto dos municípios portugueses não tem plano municipal contra incêndios. Fundão, Vila de Rei, Pedrógão Grande, Castanheira de Pera e Alijó, que este Verão foram fustigados pelas chamas, são alguns deles e «não cumprem as suas obrigações no âmbito da legislação de defesa da floresta contra incêndios», apontou a Quercus.

No entanto, a autarquia fundanense já desmentiu essa informação: «Fomos dos primeiros municípios da região, juntamente com Vila de Rei, a implementar o Plano Municipal de Defesa da Floresta contra Incêndios», garantiu o vice-presidente da Câmara. Segundo Miguel Gavinhos, nos últimos dois anos o município investiu mais de um milhão de euros, designadamente em silvicultura de prevenção na rede primária e secundária. «A 12 de janeiro de 2017, em sede Comissão de Defesa da Floresta Contra Incêndios, foi aprovado o Plano Municipal de Defesa Contra Incêndios do Fundão. A 12 de abril do corrente ano foi aprovado o Plano Operacional e ratificado o Plano de Defesa da Floresta Contra Incêndios, tendo sido submetido às entidades distritais. No dia 30 de maio foi aprovado o Plano Operacional Distrital onde estavam incluídos 11 Planos Municipais», esclareceu o responsável. De acordo com a Quercus, existem apenas três distritos no continente – Guarda, Viseu e Portalegre – onde todos os concelhos têm Plano Municipal de Defesa da Floresta Contra Incêndios em vigor e operacional.

Sara Guterres Souto da Casa, Alcongosta, Alpedrinha, Vale de Prazeres, Castelo Novo, Soalheira e Louriçal do Campo não escaparam ao fogo

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