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O Diz e os saltimbancos

Passar a jusante da ETAR de S. Miguel é recuar no tempo. Um tempo em que as cidades não tratavam os seus efluentes. As águas, ou melhor, os esgotos correm livremente com uma brutal carga sólida, um aspeto opaco e um odor nauseabundo. Ninguém diria que a montante deste local existe uma estação de tratamento de águas residuais. Estamos, então, perante um exemplo de uma infraestrutura de “faz-de-conta”. Há uns anos, enquanto membros da Junta de Freguesia de S. Miguel, visitámos estas instalações. Um dos aspetos que nos fizeram questionar os técnicos foi a reduzida dimensão do poço de receção, onde entram, em primeira mão, os afluentes, para além dos dois tanquezitos de tratamento secundário aeróbio. As explicações vagas não tranquilizaram ninguém. Ficámos com a clara sensação que aquele dispositivo estaria subdimensionado para as necessidades do burgo. Ao fim destes anos todos e depois de observar dia sim, dia não, o curso do rio Diz a jusante da dita, não houve um único dia em que a vista, bem como o cheiro, das suas águas se coadunassem com aquilo que seria o mínimo de qualidade admissível.

Estamos perante uma farsa. Uma farsa que todos nós pagamos em taxas e taxinhas, mas que parece que não serve para nada. Ensinamos que se deve respeitar o ambiente, que se deve reciclar, reduzir e reutilizar. Mas parece que quando o indivíduo é capaz, as instituições falham. E falham há décadas, não é só de agora. Falham porque não exigem. Falham porque acham que andamos todos a dormir. Está longe da vista, está longe do coração. Mas o problema é que não está. Conheço quem tivesse tomado banho ou pescado naquele riozinho e no Noéme quando criança. Hoje seria mortal. É uma vergonha. E eu sinto-me envergonhado por não ter havido, até hoje, um presidente da Câmara que cresse ser uma prioridade absoluta a luta por uma ETAR competente. As águas residuais que entram numa ETAR competente, com competentes tratamentos primário, secundário e terciário, devem ter à saída valores de carência bioquímica de oxigénio (CBO) próxima de um curso de água selvagem, ou seja, muito baixos.

Este indicador é diretamente proporcional à quantidade de matéria orgânica disponível. Quanto mais matéria orgânica, mais consumo de oxigénio há por parte das bactérias aeróbias que se alimentam dessa matéria e a decompõem. Esse importantíssimo tratamento deveria ocorrer nos tanques redondos que são a peça central de qualquer fotografia aérea de uma ETAR. Aí, agitadores e bombas de ar fornecem oxigénio a estes organismos e permitem um tratamento secundário, biológico, que simula e acelera o processo natural. Só que para isso é necessário tempo de estágio nesses tanques. O que claramente não está a acontecer, porque o volume de afluentes domésticos é demasiado, agravado com a ligação dos das unidades industriais, mas também das águas pluviais de muitos fogos (que não deveria ocorrer).

Por isso, provavelmente têm vindo a cortar etapas, acelerando processos que têm um tempo próprio e a descarregar, sem pudor, no pobre Diz, águas que ainda se encontram a meio do tratamento, na esperança de que, pelo caminho, esse processo finalize. Só que não finaliza. Que o diga o pobre rio Noéme, onde o Diz desemboca, os produtores agrícolas das localidades ribeirinhas de ambos, e a população enganada e gravemente prejudicada pela incompetência de quem nos governa e manda, salvo os pobres presidentes de Junta que tudo fizeram para resolver este problema. Uma cidade que se orgulha de ter o melhor ar do país, que é quase autossuficiente em energia elétrica renovável, não pode continuar a adiar este enorme cancro ambiental. É, por isso, urgentíssima, a construção de uma unidade adicional, ou a forte ampliação desta, para que possamos cumprir com os padrões ambientais dignos de uma cidade europeia e que diz que renasce. Mas quem não renasce é o Diz. É para aí que deveriam ser mobilizados os dinheiros da Europa. Essa é uma marca que qualquer autarca que se orgulhe da sua cidade, que ame, de verdade, a sua cidade, e que pretenda por cá ficar, deveria querer deixar às gerações futuras e aos seus sucessores.

Tantos contactos em Lisboa que uns tinham com o Sócrates e outros têm com o PSD; tanto que sempre se disse que eles se moviam no centro do poder; tanto deputado eleito por nós, mas não para nós, e principescamente pago, e nunca vi, nestes anos todos, algum poderoso agarrar, com eles-no-sítio, esta bandeira ambiental e torná-la uma das suas prioridades de topo. Provavelmente porque isto é apenas um problema de merda, que não dá votos, estando os saltimbancos mais virados para o cheiro inebriante das rosas e das flores de laranjeira que vem de Lisboa e da Europa, sendo a Guarda apenas o seu trampolim.

Por: José Carlos Lopes

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