1.O Dia Mundial do Teatro traz em cada ano a discussão sobre as causas da sua crise. Que é real e generalizada, como atestam as assistências aos espetáculos, o número de grupos em funcionamento real e a real influência desta arte. A data suscita o culto da memória de épocas em que era possível o teatro ser fonte de entretenimento, despertador de consciências e meio de intervenção política. Na Guarda, olhar para trás é recordar os tempos dos anos 70 com dezenas de sessões super-amadoras do GETA: na altura o teatro aparecia ligado às variedades e ajudava a “passar o tempo”. Olhar para trás é recordar nos anos 80 o aparecimento do Aquilo Teatro e os seus desafios teimosos à “ordem estabelecida”, mesmo com pequenos públicos. Olhar para trás é depois o trabalho mais institucional de Américo Rodrigues na CMG e no TMG suscitando novas fórmulas de teatro, nomeadamente no impulso dado a novos grupos e a produções comunitárias. As produções comunitárias vão-se mantendo, os grupos amadores patinam e duram poucos anos, fazendo um número exíguo de espetáculos, acusando o despovoamento e a emigração. Algum vazio nas estruturas que tutelam as artes e as associações recreativas levou também a que os grupos se desestruturassem e se sentissem mais isolados. O que parece claro é que os poucos grupos existentes valorizam a solidez das suas opções, assegurando quase todos um esforço de formação e prezando o intercâmbio e a comunicação entre grupos.
Mas a idade dos líderes dos grupos ou dos seus elementos mais influentes, muitos na casa dos 50-60, é o reflexo de que não se esperam jovens que venham dar “pedradas no charco”. A atração por esta arte é hoje claramente menor no mundo dos jovens, em que o culto dos talentos (na TV) e da imagem e da pequena blague (na Internet) dá a ideia aos jovens que as artes dependem do talento e não implicam uma formação sustentada. A tecnologia endeusada traz por outro lado uma sobreocupação de corpo e espírito que não permite a disponibilidade “amadora” para as artes que não trazem êxito imediato ou que não são simplesmente de performance individual. Tem de ser tudo “light” e “in”.
2.A pulsão da História sempre a senti forte: perceber como foram os antepassados, entender as relações de poder, conhecer a miséria e grandeza dos povos, a vida quotidiana séculos atrás. Ela continua a atrair-me e entendo que entre os historiadores e romancistas se elaboram versões que, não coincidindo, vão construindo a probabilidade do que se passou. Aos nossos olhos. Porque tentar perscrutar o passado é (sempre) apresentar uma versão dele. A partir do último século habituámo-nos a relativizar as Histórias oficiais dos países e a saber distinguir várias leituras delas: a determinada pelo poder (e pelos compêndios escolares) e as outras, de outros poderes ou de um olhar mais transversal. Ainda não conheço bem a versão dos espanhóis sobre Aljubarrota ou a forma como entendem a Restauração de 1640. O mesmo sobre a versão árabe da invasão dos mouros em 711 e da sua saída vários séculos depois. Mas um dia hei de conhecê-las.
Os romances históricos, ultimamente em edições de várias centenas de páginas, não são bem o género que mais me atrai mas de repente dei comigo a ler “Até que o Amor me mate – As mulheres de Camões” (de 500 páginas), por ocasião da visita da autora, Maria João Lopo de Carvalho, às Bibliotecas da Guarda. Da fama de escritora “light” a autora não se livra mas este livro mostra afinal uma capacidade e engenho narrativo que não esperava daquela fama. E não se trata apenas de arquitetura narrativa, com 7 mulheres a seguirem e narrarem os diversos passos da vida do poeta. É também o bom domínio de linguagem e a capacidade de transição entre os capítulos deixando o leitor preso a um pormenor que aparece difuso e lhe fica na mente na passagem ao capítulo seguinte. Basta às vezes uma cena que é interrompida e cuja sequência é retomada meses mais tarde numa conversa acessória, já que o livro abrange cerca de 30 anos da vida de Camões. A viagem da autora pelos sítios de Camões e a pesquisa histórica que também implicou torna também a narrativa mais credível dado que é possível verificar a semelhança dos locais e incidentes da narrativa com os reais. E de modo geral a época está bem reconstituída e sem excessos de patriotismo ou de “versão oficial”. O poder exerce-se com calculismos, mesuras, tráfico de influências, silêncios e golpes baixos e o mundo que aqui aparece não é o de um compêndio de História. Felizmente.
(Maria João Lopo de Carvalho, “Até que o Amor me mate – As mulheres de Camões”, Oficina do Livro, 2016)
Por: Joaquim Igreja