E se o mundo tal como o conhecemos mudasse radicalmente amanhã? Existe um relógio que se cose em luas, um tempo em que o suicídio aparece muitas vezes como única forma de resistência. Este é o tempo de pensar a história – “A História de uma Serva”. Previno-vos: se procuram um livro para entreter não se aventurem nestas páginas. Não é um livro fácil e não pretende ser agradável. Há uma agonia que as palavras não confessam, mas flores ainda são permitidas.
A narradora Offred vive um nome que não é o seu, um espaço branco que o jornal não escreve. Atada ao próprio corpo, a serva é vista como um mero útero. Mas como chegou até aqui, se outrora possuía um tecto, um emprego, uma melhor amiga, um Luke e uma filha? Este sistema opressor acontece algures no século XXI, numa América que deixou de ser América para passar a ser a República de Gilead, onde os desastres ecológicos somam as suas consequências, e as mulheres vêm os seus direitos desvanecerem-se aos poucos: «Sei onde estou, e quem sou, e que dia é hoje. Esses são os testes, e estou sã. A sanidade é um bem valioso».
Do lado de fora, Gilead é um cenário perfeito e algumas verdades são assumidas como absolutas: os homens são sempre férteis, todos os sons proibidos foram destruídos, e mulheres não podem ler nem escrever. Mas é preciso notar que aqui não são apenas os homens que oprimem as mulheres, as mulheres também oprimem outras mulheres. As cores confinam-nas assim a trabalhos domésticos: as Esposas (de azul) sujeitam-se a receber as servas e a assistir às relações sexuais que elas mantêm com os seus maridos, as Servas (de vermelho) dão os seus úteros em troca de sobrevivência, as Filhas (de branco inocente), as Tias (de castanho militar) são as formadoras das servas, as Martas (de verde) estão lá para servir as Esposas da elite, as Econoesposas (de vestidos listrados e roupas de azul, verde e vermelho) casadas com homens pobres vivem à margem da sociedade, e as Não Mulheres (de cinzento) que, por contrariarem o sistema, são enviadas para as Colónias ou atiradas para o Muro. Os Comandantes e os Olhos (de preto) são respeitados até na obscuridade.
No desfecho a história transpõe-se para lá de 1985 e a ambiguidade dobra-nos meio sorriso, meia lágrima. Estaria Margaret Atwood a tentar desvelar-nos uma nova Scheherazade? Uma Hannah Arendt? As interpretações serão muitas, mas quem tiver curiosidade prepare-se para tactear um abismo extremo, não esquecendo que uma realidade que não nos atinge é igualmente uma realidade.
Melanie Alves*
* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.