Trinta de dezembro, 8h30 da manhã. Inicio, junto com um amigo, mais uma jornada ciclística. Objetivo: Estação de Caxarias para apanhar o regional para Lisboa onde iria passar o ano. O amigo Luís ficaria por Miranda do Corvo. Está uma manhã gelada, pelo que a descida do IP5, virada a Norte, é feita com o máximo cuidado e máxima concentração. Não queríamos acabar mal o ano. Nada mais longe da verdade. Celorico. Fornos. Iniciamos a subida do IP5 para Chãs-de-Tavares. Cheguei 5 minutos depois do Luís. Primeira merenda do dia.
Arranquei primeiro. O mais difícil já estava feito. A partir do planalto acabavam-se as grandes subidas. Descontraí e bebi do cantil enquanto pedalava. Em frações de segundo, o pé esquerdo salta do pedal e dou por mim com uma mão no guiador, a outra no cantil, o pé oposto no pedal e o horizonte a oscilar freneticamente perante os meus olhos incrédulos. “Vai correr terrivelmente mal” – pensei. E correu. Um impacto direto, de cabeça, no asfalto e um som oco, seco e alto percorrem-me o crânio. O resto do corpo aterra com igual força destruindo a roupa na fricção com o solo. Por momentos fiquei a ver duas imagens o que me assustou. Lentamente avalio os danos e arrasto-me para fora do asfalto do velho IP5. O capacete cumpriu a sua função: absorveu parte do impacto e está destruído. Tirando uma dor nas costelas, e umas escoriações, parece que estou bem e a vontade de continuar faz-me seguir, contra os conselhos do Luís e de automobilistas que, entretanto, pararam para oferecer ajuda.
Os próximos 40 km são feitos a um ritmo normal mas com uma dor interna crescente do lado direito.
A próxima paragem é em Fiais da Telha, para fazer “número 1”. Mas mostra-me que sangue na urina não é nada normal e que está na hora de ter juízo e chamar o INEM. As dores, entretanto, aumentaram para um nível quase insuportável.
Tudo funcionou coordenada e rapidamente. Cinco minutos depois da chamada chega a ambulância da Cruz Vermelha de Oliveira do Conde. Profissionais exemplares falam comigo com a máxima calma e estabilizam-me no local. Soube mais tarde que estavam preocupados com a possibilidade de uma hemorragia interna. Arrancamos em direção a Viseu comigo um pouco mais calmo. A caminho vem a VMER que nos interseta algures. Entra um médico brasileiro na ambulância e manda a bomba do dia. “Então, meu amigo, vai você me dizer que desporto dá saúde? Olha pro’ cê aí todo partido”. No meio da dor não pude deixar de me rir e de concordar com ele. Mais uma série de procedimentos de estabilização e estava pronto para seguir. Entrei nas Urgências e, como uma máquina bem oleada e altamente profissional, a equipa do hospital de Viseu avaliou o meu estado, através de ecografia, e tranquilizou-me ao fim de uns minutos. Não havia sinal de hemorragia interna, mas teria que ser feita a avaliação da fonte de dor. Inclinaram-se para o rim e mais testes se seguiram. Ao fim da noite, depois de TAC’s, raios X e colheitas de sangue, surge o veredito: pequeno edema no rim direito com perda muito ligeira de urina pela superfície. Ia ser transferido para os HUC para ter uma segunda opinião por parte de um urologista. Em Viseu, ao fim de semana também não há. Não é só por cá.
Fui transferido e internado. A receita, para a minha maleita é simples: repouso absoluto e analgésicos. Tinha que me convencer de que iria ter um fim de ano não planeado.
Em Coimbra, como em Viseu, todo o pessoal demonstrou coordenação, profissionalismo, organização, mas acima de tudo foi sempre muito atencioso, carinhoso e, por vezes, brincalhão. Esta vertente é, para qualquer doente, o mais potente analgésico e mantém-no num estado de “boa onda” que é fundamental para que o tempo vá passando mais depressa e para que a recuperação seja mais rápida. Quanto a mim, seis dias depois de um rigoroso repouso (com passagem de ano incluída), e repetição da TAC renal, é-me dada a boa notícia: está tudo OK, mas vou para casa terminar a recuperação, com juizinho.
E aqui estou eu, no meu sofá, a escrever-vos este relato com duas conclusões fundamentais: a primeira é que os capacetes salvam vidas e deveriam ser obrigatórios não só em bicicletas, mas também em “skates” e outros veículos radicais; a segunda é que temos um Serviço Nacional de Saúde, de excelência e gratuito, de fazer inveja a muito país, dito, civilizado. O meu bem-haja a todos.
Por: José Carlos Lopes