Para lá das mais imediatas dimensões familiar e partidária, a morte de Mário Soares oferece uma ocasião privilegiada para a legitimação e consolidação do regime parlamentar republicano português. É verdade que as democracias se legitimam e consolidam em práticas diárias que põem em funcionamento o aparelho do Estado ao serviço do interesse nacional e dos seus cidadãos, mas não há como escapar da dimensão simbólica. Nenhum regime, democrático ou não, dispensa a celebração de vitórias, nem o luto formal nos momentos de pesar, como forma de solidificar consensos e gerar união em torno de objetivos comuns e de uma história comum. É em momentos como o da morte de Mário Soares que nos apercebemos como é recente o regime democrático português. Apesar da tragédia de Sá Carneiro, significativa nos mesmos termos simbólicos, ainda nenhum funeral de Estado se havia realizado desde 1974. No campo das celebrações, as ocasiões também não têm sido muitas e, como todos os regimes, também a jovem democracia portuguesa tem procurado reclamar para si, mais ou menos subliminarmente, uma parte das vitórias arrebatadas pela própria sociedade. Seja a adesão à CEE, a Expo 1998, a integração na moeda única em 2002 ou, mais recentemente, as bolas de ouro de Ronaldo e a vitória no campeonato europeu de futebol, todas estas ocasiões serviram para forjar a confiança num projeto vital de sociedade que o declínio económico do início do século, e a recente crise da dívida, abalaram fortemente.
Um funeral de Estado é uma ocasião diferente, aparentemente, mas cumpre a mesma função social com mais pompa e circunstância. É que todos os regimes políticos, democráticos ou não, são feitos por pessoas e para pessoas. O protagonismo de indivíduos particulares na vida dos regimes é matéria de discussão entre ideologias políticas mas, na vida vivida dos regimes, mesmo daqueles inspirados por visões do mundo mais coletivistas, indivíduos particulares tendem a condensar o que se projeta como a essência do regime, sobretudo os seus êxitos. A perda desses indivíduos é dramatizada socialmente, através do luto, com o objetivo de glorificar e eternizar os valores que tornam o regime moralmente superior àquele que acabou por substituir. Assim, a homenagem destes últimos dias a Mário Soares é não só a homenagem ao homem, à sua vida vivida, ao legado pessoal, mas também, e numa dimensão mais profunda, à democracia parlamentar pós-25 de abril, às suas realizações e ao seu projeto moral. A encenação faz parte da função, e as transmissões e comentários televisivos sem fim vão produzindo um consenso que transcende o homem e se projeta no país. Após três dias de luto oficial, homem e país acabam por se confundir por via do consenso que, mais ou menos artificialmente, tem sido gerado no espaço público. Amigos, camaradas e companheiros de caminho santificam o homem, adversários e detratores, declarando respeitar o luto, todos comungam da liturgia republicana e deixam para depois os ajustes de contas e avaliações históricas.
Todos os regimes políticos precisam dos seus pais fundadores. Quando estes desaparecem, há um elemento mítico que se incorpora na memória coletiva e que o regime não pode deixar de alimentar. A morte de Mário Soares marca assim um momento crucial do regime atual, o da criação de mitos e passagem de testemunho dos seus valores basilares. Não é tanto o homem Mário que está em causa, feito das ambiguidades, incoerências e polémicas de todos os homens; é já o mito que está para lá do homem, aquele que condensa todos os atos dos homens e mulheres que puseram a sua vida ao serviço do regime democrático.
Por: Marcos Farias Ferreira