Ainda há pouco se calaram as polémicas referentes à comemoração dos 30 anos do 25 de Abril e eis que se aproxima um momento definidor da nossa democracia. Trata-se das eleições europeias de 13 de Junho, e isto de que sejam centrais na definição da nossa democracia dá que pensar. É preciso, mais do que nunca, deixar de banalizar o acto de votar, não confundir o folklore que sempre acompanha os momentos de campanha com o significado profundo das escolhas que estão em causa. O exercício da cidania não se esgota nas eleições, mas estas são momentos privilegiados e devem representar, para quem se quer cidadão, o momento alto da sua consciência enquanto tal, a intervenção necessária na definição de algo que é de todos. Na década de 1960, Herbert Marcuse escrevia o seu Homem unidimensional, misto de descrição e presságio, mostrando de que forma a sociedade do seu tempo se encaminhava para ser uma amálgama de consumidores sem consciência social. Infelizmente, acostumámo-nos a retirar importância às eleições europeias, como se estas fossem uma excepção no exercício da cidadania. Aos poucos, a lógica unidimensional do consumidor vai atirando todas as eleições para a categoria de actos dispensáveis, alheia ao facto de que um novo patamar da cidadania está a ser forjado na lonjura do grande espaço político que é a União Europeia.
A recente polémica dos maus tratos a prisioneiros iraquianos é bem reveladora da face negra do exercício do poder no plano internacional e da ironia que não deixa de ser a imposição da democracia pela força. A situação assume contornos cada vez mais inimagináveis, mas após quinze anos de experiência internacional no campo da intervenção humanitária pela força o resultado parece ser sempre o mesmo. Parece não haver missão de manutenção da paz em que não seja organizado um qualquer sistema de exploração humana, designadamentre o tráfico de mulheres. Foi assim na Bósnia, em Timor e também no Kosovo. A manutenção da paz e a exportação da democracia parecem não prescindir da violência de género. Não faz parte dos princípios orientadores da acção, a que solenemente aderem os dirigentes mundiais, mas não podemos ignorar que a utilização da força comporta sempre um passivo que é fundamental identificar e contrastar com os princípios a que aderimos. O exercício de uma cidadania mundial depende desta capacidade crítica. Esquivar o problema resulta no idealismo ingénuo à la Tony Blair e no cinismo messiânico de George Bush. Com a agravante de que, no Iraque, o comportamento inacreditável dos soldados da coligação, ainda que circunscrito, queremos crer, não pôde deixar de ser impelido pela litania de discursos oficiais de diabolização de um inimigo sem alma. A desumanização de quem usa a força tem de ser considerada no passivo das democracias que procuram exportar o seu modelo.
No seguimento dos atentados de 11 de Março, os espanhóis acorreram em massa às urnas para votar. O resultado foi uma vitória da democracia, independentemente de quem ganhou e perdeu na contabilidade dos votos. Foi um acontecimento excepcional e o choque generalizado o que impeliu os espanhóis a exercer o direito à cidadania. Paradoxalmente, e ainda quando nada parece estar em jogo, o exemplo deve recordar-nos que esse é um direito de que não podemos prescindir, que em qualquer conjuntura existem valores e projectos que justificam o confronto político e que intervir nas escolhas da sociedade deve estar no topo das prioridades de todos.
Por: Marcos Farias Ferreira