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Todos temos dois lados (pelo menos)

Tresler

1. Os funcionários são pardos, como os gatos. Coitados, da fama não se livram. Jorge é um funcionário exemplar. Chega, cumprimenta, não embarca na maledicência das colegas de gabinete, que o picam ou o querem utilizar como veículo de comunicação. Ele ouve mas não traz novidades, para deceção da maioria. E no entanto é festeiro e bem disposto, introduz temas inofensivos como o futebol mas sempre numa onda de positivismo, de “que ganhe quem merece”, o que lhe vale fortes reprimendas quando não é suficientemente patriota. Não, ele não aceitaria ganhar só com empates.

Entretanto lá em casa a relação com a Manuela parece estar nos melhores dias depois de mais uma reconciliação que sucedeu a mais uma crise. Aos 42 anos e após 15 de vida a dois, a sucessão de crises e reconciliações terá atingido a velocidade de cruzeiro com níveis de resolução rápida, aguardando agora os embates dos dois filhos quando saírem de debaixo da asa paterna/ materna e começarem a dececionar. Alguém terá que assumir as culpas ou encaixar as críticas.

Ontem à noite estavam a dizer no café, no intervalo do jogo de Portugal, onde era habitual ele ser visto, que o Jorge tinha um processo disciplinar lá na repartição. Que foram jeitos e favorecimentos, desaparecimento de papéis e isto e aquilo… Uma língua mais cortante dizia mesmo que uma saída ao estrangeiro que era para ser profissional se transformara afinal num encontro amoroso. Não, deve ser má língua. Mas agora, pensando bem: será que ele já era trafulha quando ganhava há dois anos todos os torneios de sueca do café do bairro?

2. Manuela casou por amor um pouco mais cedo do que os tempos de hoje aconselham (25 anos), com a família a dizer-lhe que ainda não estava segura na profissão de professora. Mas o Jorge fora tão insistente de que era o momento e aquela amizade desde a adolescência era tão forte que afinal a fome dele encontrou-se com a vontade dela. E encaixaram: fizeram dois filhos, quase seguidos, anularam as resistências familiares ao casamento e conseguiram uma estabilidade invejável. Afinal uma vaga surgida a preceito cinco anos depois do casamento trouxera-lhe uma estabilidade invejável no emprego.

Uma sombra, no entanto, tinha restado da fase de enamoramento total. Fruto de uma educação muito menos tradicional do que a dele, Manuela tinha-se recusado a batizar os filhos, deixando para eles a escolha no momento certo, a maioridade. Jorge sentira aquilo como uma afronta, já que nunca esperara aquilo da mulher. Ela arrependera-se mais tarde porque, apesar de não acreditar, acabara por aceitar que o batizado seria uma integração mas nunca quisera perder a face. E sempre que o tema vinha à baila (progressivamente menos) era mesmo feroz. Jorge sofreu só nos primeiros tempos quando alguém lhe perguntava quem eram os padrinhos dos pequenos e na altura das festas, em que a comunidade marcava as fases da vida e em que via os outros avançar. Mas o tempo é o melhor remédio: sara mesmo tudo.

Há tempos numa tarde de sábado, enquanto a mulher tinha ido ver uma exposição numa galeria, optou por virar para uma pequena ermida a meia dúzia de quilómetros da cidade. Era uma daquelas ermidas que enchem no dia da festa de verão com promessas armazenadas em 365 dias e só ocasionalmente abrem fora das festas. Naquele dia surpreendentemente a porta do fundo da capelinha estava aberta e entrou curioso em relembrar a santa em que confiara nos tempos da infância quando ali vinha com os pais. Ao entrar, ficou estupefacto: a única pessoa que ali se prostrava de joelhos diante da santa numa pose de fé irrepreensível era a Manuela. Teve vontade de interromper-lhe a oração mas recuou cuidadosamente e lançou-se rapidamente para o carro.

3.Os filhos de Manuela e Jorge (16 e 14 anos) eram o vulgar dos alunos, o que os adolescentes podem ser: entre a sinceridade atrevida e a mentira inocente. A relação com os pais tinha sido sem sobressaltos, ao contrário de outros casais em que as cenas de pugilato ou de conflito ruidoso atroam e depois inibem os filhos ou os tornam igualmente quezilentos.

Tudo bem na escola, com classificações acima da média. Um senão era, no entanto, o eles não colaborarem com os pais nas tarefas domésticas e de família. A ideia de que as tarefas poderiam desviar as atenções dos estudos tinha empurrado os pais para cedências, mas aqui a palavra do pai tinha imperado, protegendo a prole sempre que a matriarca queria sugerir alguma tarefa ou pedir expressamente a ajuda. Às vezes há um tique em cada elemento do casal de contrabalançar uma cedência anterior com uma imposição que agora nos cabe a nós. Muitas vezes dá asneira.

Naquela tarde de domingo os dois filhos tinham saído para se encontrarem com os amigos e ver o futebol (o rapaz) e lanchar (a filha). A meio da tarde um SMS anónimo acordou a sesta do Jorge. “Venha ver o que estão a fazer os seus filhos na esplanada do Café…”. Foi e levou a mulher. Situaram-se furtivos no interior do café em frente. Os dois filhos, no meio de um grupo divertido, tomavam o gosto a dois fumegantes cigarros. “Vê lá bem, são mesmo eles?” “Então não se vê mesmo que são os teus filhos, queres uns binóculos?”.

Por: Joaquim Igreja

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