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«A nossa maior ambição é estruturar uma companhia de teatro profissional na Guarda»

Cara a Cara – João Neca

P – O grupo de teatro Gambozinos e Peobardos comemorou 11 anos, qual era a prenda que gostaria de ter recebido?

R – A melhor prenda que podíamos ter recebido era haver uma perceção mais sensata do papel do teatro, da cultura e da arte na emancipação do indivíduo e do espírito crítico da sociedade. Acho que não existe e que cada vez mais se está a perder. Parece que quem faz teatro é um OVNI ou uma coisa que não existe. As pessoas perguntam: “Sim, faz teatro, mas qual é a sua profissão?”. Esse sentido da importância do teatro era a melhor prenda que podíamos ter recebido. Recebemos, de alguma maneira, com o espetáculo que fizemos e com o pensamento que as pessoas, a seguir, nos transmitiram sobre o que sentiram. Foi uma prenda muito importante mas há ainda um longo caminho a percorrer nesse sentido. A perceção, a cultura, a tradição e o pensamento são coisas que não fazem parte da sociedade portuguesa e, maioritariamente, do interior do país.

P – Ao fim destes anos, o grupo recomenda-se?

R – Acho que sim. Para nós isto é uma viagem com muitas paragens e muitas estações. Paragens, não no sentido de interrupção mas com muitas estações que nos obrigaram a pensar no percurso que estávamos a fazer e que, a seguir, nos fizeram recomeçar de outra forma. Neste momento temos três pessoas, incluindo eu, que na altura da fundação do grupo não eram profissionais e agora são. Isso é fruto do trabalho do grupo e da visibilidade que nos deu. Fomos contratados por companhias de teatro profissional, como O Bando e o Teatro ACERT, de Tondela. Isso faz com que aconteçam muitas mudanças e temos de tentar integrá-las de maneira a que não se perca a essência do grupo, a relação com a comunidade, o pensamento sobre o interior de nós. A nossa preocupação mais recente tem sido a falta de autoestima por parte das pessoas sobre as coisas que existem na nossa região. Parece que nos juntaram a uma espécie de esquecimento porque o investimento é menor e só existe Lisboa e Porto. O interior representa uma espécie de casulo, é algo que está ali e que se visita de vez em quando no verão porque é bonito, mas existem mais coisas. Algumas pessoas não querem sair da Guarda apenas porque acham que não vale a pena. Com isto não estou a defender que estas devam sair mas sim que devam saber exatamente porque ficam.

P – A emigração e a desertificação têm tido algum impacto nas atividades do grupo?

R – Acho que o teatro que fazemos serve como uma arma de intervenção na sociedade e um olhar, através da arte, sobre o que está a acontecer. Em 2005, quando nascemos, existiam problemas um pouco diferentes. Havia a desertificação mas a emigração foi crescendo muito e, naturalmente, estamos atentos ao que se passa no mundo e ao que acontece à nossa volta. Esses são temas, entre outros, que obrigatoriamente temos de falar. Quando nos sentamos e conversamos sobre qual vai ser o próximo projeto, olhamos também para o que está a acontecer no mundo e perguntamo-nos “porquê fazer isto hoje, em 2016?”. Acho que há um lado intemporal do teatro e dos espetáculos, há uma relação com os textos mais clássicos. Tem de haver uma vontade de escrever no tempo de hoje o trabalho que se vai fazer futuramente senão não faz sentido. Será uma espécie de remeditação de um quadro, e o teatro é diferente da pintura porque é ao vivo e acontece no momento presente.

P – Que projetos contam desenvolver nos próximos tempos?

R – O espetáculo com que comemorámos o nosso aniversário foi um momento muito importante de reunião entre muita gente que tinha colaborado connosco e que nos ajudou a fundar o grupo e que, por motivos pessoais, não tem tido oportunidade de estar tão próximo como queríamos. Acima de tudo queremos tentar fazer com que a coesão continue. Depois disso, a nossa maior ambição é conseguirmos estruturar uma companhia de teatro profissional na Guarda, que nunca existiu. Posso estar a dizer uma grande barbaridade mas não devo estar longe da verdade, a Guarda é dos únicos distritos do país que nunca teve uma companhia de teatro profissional. Tem projetos para profissionais e semiprofissionais, mas uma companhia estruturada com projetos a longo prazo, nunca teve. Isto deve-se à falta de visão, falta de vontade política e de estratégia, apostando-se sempre noutras coisas. É pena, pois temos bons valores que poderiam crescer e ajudar-nos a pensar. O teatro é essencialmente isso, não é oferecer respostas, mas sim ajudar a pensar, a questionar e a por em causa as verdades estabelecidas que todos os dias vemos na televisão, por exemplo. O teatro serve para mostrar outros prismas sobre a realidade.

P – Quais são as principais dificuldades que enfrentam?

R – Somos uma associação sem fins lucrativos e, por isso, não conseguimos viver daquilo que fazemos. Infelizmente não temos uma estrutura profissional e não é possível vivermos do teatro com o trabalho que fazemos no Gambozinos. Por isso, cada um de nós faz outras coisas. Já concorremos a apoios do Governo e, infelizmente, as candidaturas não foram bem sucedidas. Maioritariamente por falta de mérito artístico das equipas, e este consegue-se com apoios, que parece que só existem se houver uma carreira por detrás de cada elemento do grupo e estes não conseguem ter carreira porque não têm apoios. Isto torna-se uma “pescadinha de rabo na boca” e é difícil fugir daí.

P – Que apoios tem, atualmente, o grupo?

R – Temos o apoio logístico da Junta de Freguesia da Vela, que é muito importante. Temos ainda um apoio anual da Câmara da Guarda. Trata-se de um apoio residual porque sempre defendemos que para haver apoios tem de haver também rigor. Não defendemos que haja dinheiro sem fiscalização e sem rigor na atribuição. Apresentámos, inclusive, um documento a todos os candidatos das últimas eleições autárquicas com esses desígnios. Defendemos que deve existir uma plataforma na Câmara que ajude as companhias a concorrer a outros apoios e a ter outra capacidade de estarem atentas. Esse apoio era o mais importante mas não existe.

P – Como vê, neste momento, a atividade cultural na Guarda?

R – O maior polo cultural da Guarda chama-se Teatro Municipal e já teve agendas culturais com maior qualidade do que tem neste momento. Será fruto dos tempos, ou devido à crise, ou será que aquele edifício merecia ter uma ocupação diferente e ser olhado de outra forma? A minha preocupação prende-se também com a questão para que serve o teatro senão para impulsionar o encontro com as pessoas e a partilha de experiências? O que me parece importante é perceber de que forma é que as pessoas que estão a desenvolver atividades culturais na Guarda podem ser agregadas e podem trabalhar mais permanentemente naquilo que sabem fazer. A cidade devia perceber que os artistas existem para ajudar, também, na busca do espírito crítico. A emancipação de cada indivíduo é fundamental para o crescimento interior da sociedade.

Perfil:

Gambozinos e Peobardos, Grupo de Teatro da Vela

Profissão: Ator e encenador

Idade: 27 anos

Naturalidade: Vela (Guarda)

Livro preferido: Autor Miguel Torga

Filme preferido: “Bons Rapazes”, de Quentin Tarantino

Hobbies: Jogar futebol e ler

João Neca

Sobre o autor

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