1.Quando morrem amigos ou conhecidos próximos temos tendência a esquecer os defeitos dos ditos e gostamos de falar deles como “homens bons”. A expressão absolve os pecados e generaliza, ficando uma imagem sincrética e pouco definida. A vida pode ter sido de choques e confrontos, de amores feitos ódios com os anos, o feitio seria comparável ao da silva, a atrair e picar quem se aproxima, as pessoas à volta até se eriçavam de raiva ou desprezo mas… tudo está agora nas mãos de Deus. Portanto fulano é… bom. Para quê pois atirar pedras? Mais vale atirar a frase cristã: “Quem não tiver pecado atire a primeira pedra!”.
E no entanto encontramo-nos numa época em que dificilmente alguém é “competente” a ponto de não o podermos acusar de qualquer coisa. A época atual puxa pelo homem integral, simultaneamente tolerante e generoso nas obrigações familiares; cordial e disponível para os amigos e parceiros; competente, esforçado e colaborativo no seu local de trabalho; eficaz na sua solidão, no pequeno grupo ou nas grandes ideias e iniciativas que envolvam a comunidade. Às vezes chegamos a iludir-nos que há mesmo homens (e mulheres) assim. Na realidade raramente (melhor, nunca) isso acontece. Detrás de um líder que detestamos está muitas vezes um pai de família apreciado intramuros; a uma mãe esforçada em casa e generosa para as suas crias não corresponde necessariamente uma especialista em relações humanas cá fora ou uma profissional dedicada no local de trabalho; um amigo “porreiraço” e razoável marido pode ser do outro lado um indivíduo sem rumo ou um viciado de copos. É pois uma ficção a ideia que construímos de certas pessoas que erigimos como exemplos da completude.
Mas, ao não existir convertida em realidade essa ideia de homem completo, ao vermos afinal desmentida pelos factos a propaganda que cada um de nós tenta fazer de si próprio de que somos (pelo menos razoavelmente) competentes em todos os aspetos, essa imagem de altar serve de guia para o nosso arremedo de vida. Aceitamo-la como ideal, como modelo e isso é bom. Entretanto nem todos temos a mesma capacidade de criar uma “imagem” (positiva), de disfarçar, de dissimular, de fazer parecer o que não conseguimos atingir. A arte da propaganda é também um misto de inato e aprendido. Na maior parte de nós a natureza não nos bafejou em malícia na dose certa para conseguir criar uma ilusão, a ilusão de que somos perfeitos e competentes, de que cumprimos o nosso destino sem grandes defeitos. Felizmente na hora da morte vão dizer que fomos… bons.
2.Haverá uma forma alternativa de aceitar a vida e de vivê-la sem termos de procurar ser completos, perfeitos e competentes? Sem procurar ser “homens de sucesso”? Lidos mais dois livros da saga Malaussène de Daniel Pennac (“O paraíso dos papões” e “O Sr. Malaussène”), deixamo-nos levar pela ideia de que talvez um dia sejamos capazes de, diante das dores e inevitabilidades que pintam a vida, ter a atitude do herói Benjamin, que gosta de viver a sua vida dissipada, que se ri continuamente de si próprio, que aceita fazer de palerma útil, mas com o qual todos gostam de interagir, seja para o amar ou para o “utilizar”. Na vida real odiaríamos a ideia de ser os bodes expiatórios duma situação em que não fomos (os únicos) culpados. E se a vida nos pedisse que fôssemos (como Benjamin) os bodes expiatórios dos incidentes da nossa vida e dos outros? Se aceitássemos (como Cristo) levar a cruz dos outros ou fazer o nosso papel na vida, mesmo aceitando que somos objetos para os outros serem sujeitos? Benjamin aguenta, irmão mais velho de uma família desorganizada, sem pai em casa, em que a mãe anda sempre ausente nos seus longos casos amorosos e regressa quase sempre grávida de mais um repente. Numa casa anárquica mas afetiva, Benjamim aguenta, oxigenado pela atenção dos seus irmãos às suas histórias (em parte reais), de que é um exímio narrador. Benjamin é mesmo chamado pelo chefe dos bandidos “um santo” nas suas funções de “total humanidade”, ao carregar com arte e capacidade de encaixe as incompetências da empresa em que trabalha.
Ora quem aceita ser santo hoje mesmo, em tempos de autoestima e competências? Ser o capacho dos outros à conta do prémio de “talvez um dia”? Aceitar o riso e o desprezo dos outros só porque a vida no-lo pede? A sociedade em que vivemos e em que temos de “vencer” não nos aceitaria assim.
(Daniel Pennac, “O paraíso dos papões”, 1985; Daniel Pennac, “O Sr. Malaussène”, 1995)
Por: Joaquim Igreja