Andava adormecida nos braços da convenção, a prática constitucional de legitimar para governar quem ganhava as eleições.
Admitia-se, sem reserva mental, que os resultados eleitorais se deviam ler pela positiva, como expressão maioritária do sentimento e da vontade do povo. Os meios de comunicação social e a opinião publicada assumia, ainda, que o desafio principal era o combate eleitoral entre as personalidades que, liderando os dois principais partidos, aspiravam a liderar o Governo como primeiro-ministro.
E assim se estabeleceu um princípio, que se transformou em regra, ética e não escrita, experimentado em vários momentos históricos. Mas de repente, surpreendendo a alma da República nos braços daquela convenção, o líder derrotado do Partido Socialista, somando a sua derrota à derrota dos dois partidos políticos mais à esquerda da representação parlamentar, assume-se a querer ganhar na secretaria o que perdeu nas eleições.
No plano da ética e dos valores compreende-se mal como é que o líder do partido que conduziu o país à bancarrota e de onde emergiu o austero plano de recuperação económica e financeira, executado nos últimos quatro anos, venha criticar as políticas a que o seu próprio partido deu causa e efeito.
No mesmo plano é ainda duvidosa a legitimidade popular a que se arroga quem, na liderança do seu partido, transformou uma trajetória de sucessivas vitórias numa pesada derrota.
Mas a estratégia de Costa deve ser lida e entendida com fundamento numa leitura revisitada de Marx e da sua análise histórica da luta de classes em confronto e na recusa da democracia formal de base liberal. O que agora e no futuro contará é a relação de forças material, que em cada conjuntura deve conduzir o processo histórico ao serviço da luta de classes.
É certo que nesta convergência tática da esquerda portuguesa há um objetivo comum e três agendas próprias, que cada um dos demais finge pretender ignorar.
O PS de Costa tudo sacrifica pelo objetivo de curto prazo de voltar ao poder. O Bloco de Esquerda quer uma fatia do poder para ser politicamente relevante e o PCP quer conservar no Estado todo o sector dos transportes, importante “arsenal” sindical e corporativo.
Mas se a agenda do PS é de curto prazo, o BE tem no médio prazo uma estratégia de crescimento e de progressiva relativizacão eleitoral do PS. Já o PCP tem como estratégia relativizar o Bloco e voltar a ser o principal partido à esquerda, garantindo a hegemonia do sector sindical.
Estas distintas agendas, porque são antagónicas entre si, condicionarão a duração do eventual e futuro governo minoritário do PS. Neste contexto em que o PS recentra o seu posicionamento à esquerda, o PSD deve seriamente debater a sua estratégia partidária de médio prazo.
Sendo evidente que nesta legislatura parlamentar deve reforçar a coesão da plataforma eleitoral com o CDS, já no médio prazo o PSD deve resistir à tentação de um bloco de direita para, autonomamente, ocupar o centro político e eleitoral como partido social democrata que é na sua tradição e na sua ideologia.
Neste interessante momento histórico não é só Marx que entrará em cena. Também Lenine marcará presença, na pureza ideológica do seu conceito de vanguarda revolucionária, que emerge na ação e no pensamento dos parlamentares eleitos a esquerda. Mas Estaline estará também presente! Nesta fase, escondido, para aparecer… mais tarde, quando o PCP entender que é a hora!
Por: Júlio Sarmento
* Antigo líder da Distrital do PSD da Guarda e ex-presidente da Câmara de Trancoso