Um dos pilares da Medicina sempre foi a ligação entre o médico e o seu doente. Esta relação ancestral perdura até hoje e constitui um aspeto fundamental da Medicina moderna.
Infelizmente, o caminho traçado pelos sucessivos dirigentes da área da Saúde tem dificultado, cada vez mais, esta preciosa relação. A relação médico-doente tende a ser substituída pelo peso da burocracia excessiva, da pressão pelo aumento da produção sem preocupação pela qualidade, pelos meios informáticos desumanizados e pela criação de uma Medicina baseada em números descontextualizados em detrimento da preocupação pelas pessoas.
É necessário que os profissionais de saúde não permitam que se perca a proximidade e a ligação estreita aos seus doentes.
Ao valor do indivíduo e do seu bem-estar tem sido sobreposto o peso dos números descontextualizados, dos gráficos convenientes e dos clichés sobre a insustentabilidade económica do sistema de Saúde, em particular do Serviço Nacional de Saúde.
O fator humano tem sido esmagado pelo fator puramente economicista e contabilístico. Os ganhos na qualidade em Saúde e o investimento nas pessoas passaram a valer muito pouco face aos milhões de euros de cortes cegos. Mas, visto que os cortes são a face visível do desinvestimento na qualidade dos cuidados de saúde, estes irão reverter-se, a breve prazo, em despesa descontrolada devido às consequências sobre os doentes que deixaram de ir às consultas, que deixaram de comprar a sua medicação e que têm desvalorizado a sua Saúde e a sua qualidade de vida.
Uma das áreas onde mais se sentiu este tremendo impacto negativo é a da importante ligação entre o médico e o seu doente.
Discretamente, a relação médico-doente está a ser substituída por instrumentos de medição, por indicadores e está a ficar condicionada por pressões externas.
A relação médico-doente sempre foi o âmago do ato médico e do tratamento do doente. O conhecimento do doente e do seu ambiente, a relação de confiança construída e a ligação humana desenvolvida sempre foram as condições para o êxito na prestação de cuidados de Saúde. Hoje, o sistema de Saúde está a ser alicerçado na desvalorização deste conceito.
O lado humano volatilizou-se e foi suplantado pelas regras do custo-benefício imediato.
Impõem-se tempos de consultas desfasados da realidade, contabilizam-se números de consultas, de intervenções cirúrgicas independentemente da sua dificuldade ou exigência.
Criam-se barreiras administrativas e burocráticas que afastam os doentes do seu médico.
Despersonalizam-se os recursos humanos deixando de contratar os médicos diretamente e contratam-se empresas de recrutamento cujo modelo não tem em conta a especial sensibilidade da área da Saúde.
Em grande parte, o médico deixou de ter a autonomia para tratar o seu doente, já que é obrigado a obedecer a programas informáticos disfuncionantes, a normas genéricas e é permanentemente pressionado por exigências de quantidade ao menor preço possível.
A burocratização e informatização da Saúde, ao invés de ter aprofundado a inclusão do doente, tornou-se na pior armadilha para o afastar do sistema e dos profissionais de Saúde.
A personificação da relação médico-doente está a dar lugar à massificação da relação médico-doente.
Esta relação – preciosa e essencial na profissão médica e com inegáveis benefícios para o doente – está a ser destruída subtil e silenciosamente.
Mais grave do que destruir um sistema público de Saúde, será destruir a sua componente humanista. Reconstruí-la poderá demorar décadas…
Por: Carlos Cortes
* Presidente do Conselho Regional do Centro da Ordem dos Médicos. Escreve mensalmente