Num certo sentido, a política é a forma de criar ideias e imagens de nós e dos outros como comunidade e de as contrastar, e por estes dias muito se tem vociferado sobre a Grécia, como se de repente todos nos tivéssemos tornado especialistas na alma helénica e na cura dos seus males. Por isso mesmo sempre foi deslocado reduzir a questão da Grécia, ou a questão da crise das dívidas soberanas, ou simplesmente a crise da Europa a uma questão financeira ou económica; ao contrário, tudo são dimensões da mesma questão política que é a emergência de um espaço público europeu. Ao contrário do que tem feito questão de sublinhar o governo português, isto não é uma questão de estados virtuosos contra estados viciosos por natureza; é uma questão de definição dos princípios que organizam a comunidade política europeia, os seus horizontes e as suas expectativas.
Porventura ficou esquecido na espuma do tempo que a construção europeia está marcada por diversos impasses, muitos deles provocados pelo ‘não’ em referendos realizados em diversos países. Aconteceu a propósito da aprovação de tratados europeus (Maastricht, Nice, Constituição Europeia) o que, paradoxalmente, tornou mais fácil a superação desses impasses. Essas resistências foram colocadas por estados do Norte ou simplesmente cêntricos –França, Holanda, Dinamarca– e resolvidos através de concessões pelos parceiros ou pelas instituições. Tudo de acordo com o método normal do compromisso a que se tem chamado o método comunitário. O referendo grego assume outra importância porque é convocado não para renegociar um ou outro artigo num tratado, mais ou menos efémero, mas para mobilizar in extremis a comunidade e legitimar uma forma alternativa de a organizar e lhe dar um futuro.
A força que o ‘não’ assumiu, e inesperada para muitos, foi fruto da convicção que vingou no espírito grego de que os burocratas do euro estão a atirar o país para um beco sem saída e que a manutenção na moeda única não vale todas as penas. Mesmo que a campanha do ‘não’ não fosse pela saída do euro, o resultado expressivo após uma semana de bancos fechados mostra que hoje os gregos estão dispostos a tentar soluções que até há pouco pareciam impensáveis. Um processo de integração como o da Europa no pós-guerra dificilmente resiste quando as soluções políticas são permanentemente ditadas de cima e a legitimidade democrática crescentemente contestada. No passado isso era possível, mas hoje em dia a contestação democrática é um sinal da emergência e reforço da própria esfera pública e europeia, pelo que é impossível iludir. Era inevitável que a política saísse das instituições onde estava fechada, que acabasse por envolver as opiniões públicas e ligasse de forma cada vez mais estreita os assuntos internos às grandes linhas de ação e políticas europeias.
Pede-se apenas mais responsabilidade aos dirigentes políticos para que o debate não caia nos estereótipos do costume e não incendeie as multidões ao estilo do passado. Todos temos a responsabilidade de saber onde isso vai parar.
Por: Marcos Farias Ferreira