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Uma História da Violência

Um miúdo assassina outro para lhe roubar umas sapatilhas e um telemóvel. Um grupo de miúdas, assistidas por um ou outro rapaz, agride outro miúdo durante um interminável quarto de hora. Um homem mata a mulher. Outro mata a mulher e a sogra, ou a mulher e a sogra e a cunhada. Mulheres são espancadas todos os dias, um pouco por toda a parte. Um rapaz mata a namorada por ciúmes, outro faz o mesmo, não se sabe bem porquê, outro porque foi deixado. Outro grupo de miúdos espanca uma criança num autocarro escolar. Um polícia espanca um adepto do Benfica à frente do pai e dos filhos menores, talvez pensando que estava a espancar o próprio Benfica, com isso aliviando eventuais frustrações clubísticas. Tudo somado, parece que uma inaudita vaga de violência tomou conta da nossa sociedade.

A Arcádia, lamento, nunca existiu. Nunca houve “bons velhos tempos” em que os pastores tomassem placidamente conta dos rebanhos enquanto escreviam poemas, num tempo prístino, sem maldade. Se a nossa época tem alguma coisa de novo não é, nem de longe, um aumento da violência. No meu tempo (detesto dizer isto assim) era muito pior. Os miúdos (na altura eram “os garotos”, ou “a canalha”) agrediam-se diariamente e à pedrada. Levavam navalhas para a escola e faziam fisgas com um pedaço de madeira e uma tira de câmara-de-ar. Se chegassem a casa a sangrar e se queixassem, levavam mais. Os professores batiam-lhes: uma reguada por uma falta (uma vírgula ou um acento) e cinco reguadas por um erro. Alguns professores mais sádicos faziam buracos na régua para os castigos doerem mais. Havia uma piada assim. sabem qual é a terra portuguesa de que os cábulas têm mais medo? Peso da Régua! No início das aulas, os pais levavam os filhos à escola e autorizavam os professores a bater-lhes e, se fosse preciso, davam logo ali o exemplo. Não havia meninos, só garotos, os meninos eram os mariconços dos filhos dos ricos e havia poucos ricos.

Nessa altura não se falava tanto de violência porque a violência era muito diária, tanto que não era notícia. Comia-se e calava-se. Os jornais tinham outras coisas de que falar e os dois únicos canais de televisão não perdiam tempo com o assunto. Se alguma coisa mudou para os tempos de hoje, foi para muito melhor. Por isso, a muita atenção que os media dedicam hoje ao assunto é um bom sinal da evolução dos tempos e um importante contributo para uma decisiva mudança de mentalidades.

Por: António Ferreira

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