Da cidade de Signaghi avista-se o Cáucaso monumental que se estende do Mar Cáspio ao Mar Negro e separa a Geórgia da extensa periferia russa. A partir do campanário onde subimos, observo a compacta massa de rocha e gelo que lança a sua sombra avassaladora, prestes a engolir Signaghi e a planície à sua volta. A descrição é literal: há uma cidade chamada Signaghi; há um campanário; há uma compacta massa de rocha e gelo com o nome de “Cáucaso” que se estende do Mar Cáspio ao Mar Negro, avassaladora. E no entanto, a descrição também é figurada: a compacta massa representa a Rússia, a planície a Geórgia, e do campanário onde subimos o espetáculo da natureza que preserva, em movimentos petrificados, a tutela russa sobre a vasta e complexa região.
De Signaghi a estrada nacional serpenteia, vagarosamente, na direção da capital Tiblissi. Pedimos a Nick, o taxista, que nos deixe por Didube-Chugureti e entramos no cemitério de Kukia onde se amontoam as lápides das gentes de outrora, rodeadas de ervas secas e que ameaçam condenar ao esquecimento o próprio esquecimento. Vagamos silenciosamente por ali, tentando imaginar a pessoa que se esconde sob as letras puídas do alfabeto cirílico, ou do alfabeto georgiano: Abram Nikolaevitch Tetradze, doutor em ciências médicas (1872-1915); Maria Gueorguievna Tetradze, “a paz esteja contigo, querida mãe” (1884-1912); Dmitri Grigorievitch Sessiev (1861-1907); Max Gabunian, engenheiro (1904-1943); Bagrat Arutiunovitch Nazarian, doutor em ciências médicas (1892-1956); Bitarov M. (1909-1942). O cemitério de Kukia revela, ou esconde, o passado cosmopolita de uma cidade que atingiu o apogeu nos finais do século XIX, fruto da capacidade realizadora das burguesias arménia e judaica, entre outras, mas que os períodos soviético e pós-soviético foram transformando em pós-cosmopolita e periférica.
Na estação de Ortachala apanhamos uma marshrutka (minibus) para Ierevan, a capital da Arménia. São sete horas a ziguezaguear por nenhures. De repente, a estrada leva-nos a Alaverdi e entramos na cidade pós-soviética por excelência. Um gigantesco complexo industrial ferrugento e parcialmente abandonado dá abrigo à frenética atividade urbana de gente que parece entrar e sair por cada um dos seus poros. Olho pela janela da marshrutka como se estivesse diante de um cenário pós-apocalíptico; na minha imaginação, os habitantes de Alaverdi sobrevivem por entre as ruínas de uma qualquer civilização desaparecida – na realidade, a civilização soviética – num futuro distópico. Mais à frente aparecerá Ierevan, também sob a sombra do passado soviético. A entrada na capital é surpreendente, à medida que um monstruoso grupo de edifícios toma conta da vista e enegrece a tarde. O que do cimo da colina, à distância, parecia vagamente o perfil de arranha-céus de uma cidade futurista tornou-se, pouco a pouco, num aglomerado de blocos de apartamentos decadentes e restaurados de forma improvisada – numa arquitetura vernacular – à medida da capacidade de cada morador. Com o grotesco conjunto para trás, o centro de Ierevan revela-se nos preparativos para a Páscoa ortodoxa e as cerimónias do centenário do genocídio.
Por: Marcos Farias Ferreira