1.Temos necessidade de ouvir (ver) histórias todos os dias. Temos necessidade de contar histórias todos os dias. As da família, da vizinhança ou do bairro, as da comunidade ou do mundo em geral. Para medir esta vontade de contactar com histórias (de consumir histórias) basta calcular, para além das conversas corriqueiras de café, as horas de séries e filmes que os tempos de férias e lazer vão enchendo. Mas só o “medium” é que mudou. A vontade de ter histórias frescas transferiu-se assim em parte das palavras sonoras do “soalheiro” ou da taberna para o domínio do tecnológico. O gosto de contar e de perceber histórias é algo de intrínseco ao homem, animal pensante que se constrói nas ocorrências alheias e no seu simbolismo ou exemplaridade.
Na narrativa escrita, cópia e depois sucedânea da tradição oral, finalmente disciplina independente e pujante, o fenómeno é atualmente o da profusão de histórias, dir-se-ia mesmo do excesso de histórias (cerca de 7 livros de ficção editados por dia em Portugal). Como no cinema. Tudo parece já estar contado, só as novas técnicas de contar podem ainda surpreender-nos. Na escrita, ao contrário dos filmes, as técnicas de contar, que tinham atingido o apogeu até meados do séc. XX, estão, ao se tornarem “desconstrutivas”, a operar um efeito assinalável de afastamento de leitores, chegando as histórias escritas da Série A ao público através do cinema ou das vulgatas didáticas. Ao se erigir no entanto uma Série A muitas vezes de difícil descodificação para leigos, desencadeia-se a produção de várias séries B com leitores fiéis e fanáticos, por exemplo nas áreas dos romances históricos (ex. Philippa Gregory ou Ken Follett) ou sentimentais (ex. Nora Roberts ou Nicholas Sparks).
Perante a saturação de literatura nos nossos dias, os modernos dirão que é necessário acompanhar com modelos arrojados e “incoerentes” a sociedade (em crise ideológica e política, ela também); os tradicionalistas, ainda a viver na escrita queirosiana ou neorrealista, dirão que os modernos se estão a afastar do que é genuinamente humano, o instinto de contar histórias.
2. E que tipo de histórias gostamos de ler como narrativa de autor? Cada um dirá de si, mas a mim encantam-me sempre as que desvendam a inocência ou a sua ilusão, as que jogam no inesperado e nos conseguem surpreender até ao fim ou as que nos conseguem provocar uma comoção, uma dor sem lágrimas, uma melancolia que é no fim de contas o outro lado da alegria que procuramos.
No meio de tanta voz a clamar pela felicidade e a reivindicar a felicidade por decreto, acalmam-nos as narrativas em que vemos as personagens casadas com o sofrimento, roupa que faz parte do humano e o veste de forma natural. Há personagens em que vemos, como espelho, todo o fundo negro das nossas dores e onde, por isso mesmo, reconhecemos a nossa natureza e a solidariedade dos outros: não somos só nós que sofremos, outros antes de nós, quase todos à nossa volta são construções de luta e meias vitórias às vezes, outras vezes quadros harmoniosos de conformismo e aceitação, de medo e às vezes de cobardia. Os épicos são belos, é verdade, mas cada vez acreditamos menos neles: os que superam a natureza humana não parecem humanos. É por isso que hoje Luarmina, aliás Albertina Sebastopoulos, personagem de Mia Couto em “Mar me quer”, uma velha gorda que gosta de ouvir histórias tristes do vizinho Zeca Perpétuo, está aqui ao meu lado, a desfolhar malmequeres. Foi bonita e elegante e a mãe, por ela ser tão bonita e atrair os homens, quis rasgar-lhe a cara para a desfear. A vida levou-a para a Missão, fez dela costureira, hoje espera a velhice ouvindo as histórias verdadeiras e inventadas de Zeca. Quando ele se cansa de voltar ao passado triste e quer parar de contar, ela promete-lhe que o deixa vê-la tomar banho nua. Quando já parecia que a história não avançava eis que afinal surge no enredo uma antiga mulher de Zeca, quando o julgávamos apenas viúvo da vida. Zeca aqui do outro lado da minha mesa conta a história, nós olhamos para ele a ver se ele pisca o olho de tão inverosímil que a história é. A certo ponto já não descobrimos se aquilo é contado tudo como verdade ou se se assume mesmo como fantasia total. Mas o efeito está conseguido. Luarmina vai responder daqui a pouco com outra revelação, também ela quase de não acreditar.
Mia Couto tem também a vantagem de fazer nascer as suas histórias de uma sociedade em constante cruzamento e miscigenação, muito diferente da dos seus leitores europeus. Mas, para além da vulgaridade do sofrimento que vive casado com a vida, o que mais nos surpreende e incomoda é a tranquilidade perante a morte, que se abraça e a quem se dão as boas-vindas. E se olharmos para 40 ou 50 anos atrás a nossa sociedade não era assim também? Temos mesmo dificuldade em aceitar isso. Hoje quase achamos heróis os que, numa aldeia banal aqui ao lado, lutavam com a vida e se faziam sangue da terra que lavravam, suando, semeando, parindo e brigando: aceitando a ordem das coisas sem (ter de) a entender. (Mia Couto, “Mar me Quer”, 2000)
Por: Joaquim Igreja