Nascido como János Weißmüller em 1904, no Banat austro-húngaro, o Tarzan que muitos se lembrarão dos ecrãs a preto e branco é uma personagem incontornável e definidora do século XX. E é-o sobretudo porque preenche os nossos imaginários com uma África primordial, selvática e insondável. É tanto assim que para muitos, hoje, o continente africano ainda é encarado dessa maneira. Para muitos hoje, a África ainda é um continente de aracnídeos gigantes, areias movediças e gente inferior que trata os estrangeiros por bwana, a palavra Swahilli que significa “senhor”. Isto deve-se em parte a Johnny Weissmuller, não ao homem ou ao ator, àquele que foi cinco vezes campeão olímpico, mas à personagem, ao Tarzan que quase não distinguimos do ator.
Ao encarnar o ‘homem-macaco’ de grito estilizado, Weissmuller veio dar conteúdo audiovisual ao bom selvagem de Jean-Jacques Rousseau e ao Robinson Crusoe de Daniel Dafoe. A partir do ecrã ele erige-se, ao mesmo tempo, em primus inter pares de homens e bichos mas também em dominador do mundo natural, o epítome do homem branco que assume como destino manifesto a racional instrumentalização da natureza. O olhar paradoxal que o homem moderno lança sobre o mundo encontra aqui terreno fértil. A África tanto encarna os medos mais profundos da humanidade como os seus anseios de liberdade; tanto é o coração das trevas de Joseph Conrad como a savana a perder de vista de Karen Blixen. O olhar ocidental que se abate sobre África é paradoxal mas sempre converge na expectativa de um espaço primordial: primordial na supremacia da natureza e no caráter insondável e quase irracional das gentes.
Foi Johnny Weissmuller quem me veio à memória, há poucos meses, enquanto viajava de táxi-mota, nas margens ruandesas do lago Kivu. Ocorreu-me então que a África que ali bordejava era tudo menos a África de Tarzan, que eu contemplara religiosamente nas longas tardes de cinema da TVE, nos anos 80. Não fora certamente para o lago Kivu em busca da África dos safaris mas também não me deparara com o coração das trevas. Ao contrário da África de Weismuller, aquela que encontrei revelou-se bem mais complexa que o objeto apropriado e simplificado pelo olhar ocidental moderno. E a convicção reforçada de que essa complexidade do real só se nos revela no fundo do olhar daqueles que temos a responsabilidade de (re)conhecer na sua (in)diferença. Em cima daquela mota, subindo e descendo as mil colinas do Ruanda, aprendi a reconhecer as faces tantas vezes indistintas dos que nos são estranhos, e o que se oculta nelas. E ocultam-se tantas expectativas, alegrias, frustrações e sofrimentos na amálgama de homens, mulheres e crianças que carregam água, lenha e mercadorias, percorrendo as estradas e caminhos do Ruanda, com a vitalidade que se encontra só nos heróis improváveis. Essa é a minha África, a dos caminhos poeirentos onde estão marcadas as pisadas e a vontade própria dessa gente comum que todos os dias faz e desfaz o seu caminho.
Por: Marcos Farias Ferreira