Confesso que sinto algum fascínio por quedas no mundo financeiro. Não porque as deseje ou festeje, longe disso, mas porque são quedas com um estilo muito particular: são lentas, assessoradas por imensa gente, acompanhadas por um jargão muito próprio e propositadamente opaco, com revisões históricas muito parciais e uma versão muito bem estruturada e linear. Com um problema e duas particularidades: não são verdadeiras e são contadas por pessoas que se acham donas do mundo e onde não se vislumbra qualquer resquício de arrependimento ou dilema moral.
A questão moral não é menor em todo o discurso que Ricardo Salgado fez terça-feira de manhã. Os únicos momentos em que notei alguma frase com preocupações morais foi num provérbio chinês que usou em sua defesa e quando falou da sua família. Ou seja, quando se trata de defender a honra ou a imagem da família, o discurso pode entrar em valorações morais. Quando se tem que falar do banco, do grupo e do desastre que os levou ao fundo, todo o texto assenta em factos, datas, cartas, números. A moral desaparece, esfuma-se, não existe.
O texto de Ricardo Salgado não me surpreendeu em nada. É um texto bem feito, apoiado por economistas, advogados e professores de Direito. Um monumento de factos parciais que têm como único objetivo a não condenação judicial ou regulatória do ex-presidente executivo do BES. Nada mais do que isso. Tudo o resto, ou seja, o arrependimento, o perdão, a desculpa ou mesmo a vergonha, não existem.
É essa absoluta falta de qualquer traço moral que me choca, como já me tinha chocado na defesa de ex-administradores do BCP ou do BPP, por exemplo. Do BPN nunca esperei nada, confesso, mas de banqueiros com alta formação profissional e que pertencem – por berço, carreira e negócios – às chamadas elites nacionais, o mínimo que se exigia é algum arrependimento. Mas isso nunca acontece e é por isso que as quedas no mundo financeiro são tão fascinantes.
Quando se tem que falar do banco, do grupo e do desastre que os levou ao fundo, todo o texto assenta em factos, datas, cartas, números. A moral desaparece, esfuma-se, não existe.
Dois pequenos exemplos:
a) A queda do BES/GES começou com a decisão ilegal (e, já agora, imoral) de falsificar as contas da ESI em 2008. Foi esse problema, que cresceu de ano para ano até ter sido descoberto em 2013 que contaminou tudo. Ora, para Salgado, o problema só existe a partir do momento em que foi detetado, como um “passivo não registado na ESI” (sic). A origem do problema, a que ele esteve ligado, é um pormenor que pura e simplesmente não existiu na defesa de Ricardo Salgado.
b) É hoje óbvio porque é que o BES evitou por todas as formas a intervenção da troika. Ricardo Salgado afirma que isso “não foi fruto de uma fuga, de um temor ou de um plano secreto”. Pois não, foi fruto de uma coisa bem mais simples: a entrada da troika no BES teria apanhado o buraco do Grupo Espírito Santo e obrigado a vender todas as empresas não financeiras, dando cabo de uma fonte de receitas, poder e influência de uma família.
Podia dar mais vinte exemplos. Mas penso que estes dois chegam. A moral matinal de Ricardo Salgado é muito peculiar. E duvido que mude ao longo do dia.
Por: Ricardo Costa
* Diretor do Expresso