O ano que devia ser dominado pelo fim do protetorado, leia-se fim do programa de assistência, acabará por ser o ano do fim de José Sócrates, ou pelo menos o ano da detenção e prisão do ex-primeiro-ministro. Porque fim, fim… Veremos! Aliás, e mutatis mutandis, também Sebastião José de Carvalho e Melo foi acusado de abuso de poder e de corrupção e condenado por toda a população como um malfeitor, nos idos do séc. XVIII, o que não o impediu de hoje ter a maior estátua de Lisboa e ser, para muitos, o melhor primeiro-ministro da história portuguesa, com o epíteto de Marquês de Pombal. Feitas as devidas alterações, e muito para além de toda a semântica ideológica que circula por aí, José Sócrates deixou uma marca indelével no seu tempo, que é o nosso tempo, e a sua detenção foi um nó na garganta dos socialistas, mas deve ser também um momento de reflexão para todos os portugueses.
Perante o que se sabe, e do muito que já se sabia (ou se cochichava nos muitos mexericos que há anos circulam um pouco por todo o lado) e ainda muito longe de sabermos tudo o queremos saber e que temos o direito a saber, e enquanto aguardamos pelo desfiar do novelo judicial, devemos interrogar-nos como chegámos até aqui. Como foi possível que tudo isto acontecesse diante dos nossos olhos? Como foi possível que o mesmo homem que foi eleito com uma maioria absoluta, a primeira na jovem Democracia portuguesa, esteja agora na cadeia a aguardar julgamento? Como foi possível que o Partido Socialista tenha elevado e confiado cegamente no mesmo homem que, alegadamente, urdiu um esquema de proveitos pessoais, ilícitos, em benefício próprio? Como é possível que personalidades de uma funesta elite intelectual referência de toda a sociedade se deslumbrassem perante o mais intrépido e sagaz dos políticos do nosso tempo, mas que, afinal, é também, alegadamente, o mais corrupto? Como é que durante tantos anos, tanta gente, tantos iluminados, conviveram com a promiscuidade, com o terrível cheiro de putrefação em que o regime foi caindo com estes protagonistas? Não foi apenas Sócrates quem abriu os bolsos para nos roubar a ilusão de vivermos numa sociedade honesta, com regras e bons costumes, foram todos os que, com mais ou menos proveitos, nos trouxeram até aqui. Que Estado de Direito é este?
Uma semana depois da queda de um ministro, na sequência da acusação de corrupção a altos funcionários do Estado, nos vistos “gold”, depois da queda ruidosa de Ricardo Salgado e do fim do império Espirito Santo, do buraco BPN onde tantos políticos foram residentes – de Oliveira e Costa a Dias Loureiro -, da condenação do ex-ministro Armando Vara e tantas outras figuras da nossa vida pública, teremos de nos perguntar se ainda confiamos neste regime: Como poderão as pessoas, os cidadãos, confiar num regime cuja classe política não parece ter meios ou interesse em escrutinar e excluir os menos competentes e idóneos? Como poderá o cidadão deixar de olhar para as juventudes partidárias sem sentir que ali se criam novos e perniciosos dirigentes de uma elite putrificada e oportunista? Como poderão os eleitores voltar a confiar em líderes que exibem uma silhueta sem coluna vertebral, que deixam um rasto de delinquência e sindicância oportunista por onde passam? Como não perceber que a abstenção (mais de metade da população) é o resultado não apenas do vácuo de ideias que grassa nos partidos, mas também o fedor de corrupção e oportunismo que domina a vida partidária? Enfim, como poderemos confiar num sistema e num regime que assenta nestes partidos?
Como em tantos outros lugares, este é o tempo de nos revoltarmos, este é o tempo de sairmos à rua e protestarmos contra estes poderes, contra estes políticos, contra estes partidos, este é o tempo de dizer basta.
Luis Baptista-Martins