Tenho seguido no jornal “O Público” uma polémica entre Carlos Fiolhais e Paulo Varela Gomes, ambos professores da Universidade de Coimbra. Começou o primeiro por reclamar contra o facto de o governo ter por decreto promovido a homeopatia a ciência médica legítima, chamando a isto uma “diluição da ciência nacional”. Fazia ironia com um dos pilares da homeopatia, consistente na diluição extrema do princípio activo dos seus medicamentos, ao ponto de este ser praticamente inexistente nas pílulas ou xaropes administrados aos pacientes. Paulo Varela Gomes sentiu-se ofendido e respondeu a tiro: a ele próprio, Varela Gomes, tinha sido diagnosticado um cancro em estado muito avançado, contra o qual a medicina tradicional não tinha prometido nada de satisfatório; mediante alteração de hábitos, alimentares e outros, e medicação homeopática, tinha verificado resultados espectaculares e considerava-se curado; Carlos Fiolhais era por isso uma besta (esta parte é deduzida por mim do sub-texto) e não devia falar daquilo que ignorava tão evidentemente.
Posso ser parecido com Carlos Fiolhais na parte da ignorância, que no meu caso é enciclopédica, tantos são os assuntos em que ignoro tantas coisas, e de modo mais evidente ainda na parte da besta, mas gostaria mesmo assim de ver esclarecidos alguns assuntos. Mostrando-se tão ofendido com o escrito e apontando com tanta assertividade a sua experiência pessoal como argumento, Varela Gomes mostrava entender que a remissão do seu cancro tinha sobretudo a ver com a medicação homeopática que recebeu. Só assim se entende a agressividade perante a diluição do saber com que ironizava Fiolhais. Mas Varela Gomes é professor universitário e sabe que um dos primeiros deveres da universidade se cumpre com a procura, antes de mais, da verdade. Por isso, se acredita que o seu cancro foi curado com comprimidos de açúcar, farinha e uma diluição extrema (ao nível de uma gota do princípio activo por todo o Mar Mediterrâneo), deve imediatamente promover, para benefício de toda a Humanidade, a divulgação do mecanismo médico que nessas circunstâncias levou à cura. Se é verdadeira a relação de causalidade em que acredita, então o sucesso deve ser repetível e explicável.
Uma pausa céptica: sabemos muito pouco, todos, sobre tudo. É a tal ignorância enciclopédica. Por facilidade, atribuímos o valor de causa original a fenómenos que nada têm a ver com a verdadeira razão das coisas senão a circunstância da sua coincidência, no tempo ou no espaço, com o efeito verificado. Um sacerdote Maia passa com a faca pela garganta de uma criança sacrificada a um deus qualquer. Nesse ano não houve seca, ou demasiada chuva, assim se respeitando a prece feita no momento do sacrifício. No ano seguinte será sacrificada mais uma criança ou, se a graça não for concedida, mais algumas. Alguém acredita na relação de causalidade entre os sacrifícios e o resultado pretendido, mesmo que este seja obtido? Varela Gomes acredita, mas como professor universitário não pode generalizar uma regra universal a partir da sua experiência individual, e devia sabê-lo.
De volta à homeopatia: acreditarei, como uma vez me disse o Vasco Queiroz, quando conseguirem produzir, a partir da diluição extrema de um qualquer princípio activo, uma pílula contraceptiva.
Por: António Ferreira