Num tempo em que a emigração passou de sintoma a oportunidade no discurso político dominante, vale a pena revisitar um dos raros filmes nacionais que retrata a vida dos emigrantes portugueses. A emigração pode ser uma via escolhida, mas muitas vezes é uma saída que se impõe, uma resposta ao desespero de quem não encontra soluções no país onde nasceu. Estes emigrantes, mais ou menos qualificados, procuram o bem-estar. Mas esta vida nova num local novo só é melhor se for sentida como sua. Senão é uma vida perdida.
A originalidade de “Ganhar a Vida” (2001) começa logo no tema: os emigrantes portugueses em França e a sua luta pela justiça económica e social. A sua força dramática resulta de uma estrutura que dá um grande peso à vida familiar e aos conflitos internos no grupo de manifestantes. Cidália, a mulher que Rita Blanco compõe de modo tenso e determinado, está sozinha desde as primeiras cenas de revolta. Há quem lhe diga para desistir face à polícia. Essa solidão vai-se acentuando. Todos a abandonam. Ela provoca a catarse colectiva, mas permanece só — como quando lê o poema de Luís de Camões na festa da associação.
O seu filho morreu e a sua dor não diminui. Não é a verdade que a move, nem uma tentativa de apaziguamento. A sua indignação é dirigida contra a passividade e o comodismo de uma comunidade que se fecha sobre o seu próprio medo. À época de estreia, o realizador João Canijo contava que alguém lhe disse que os emigrantes portugueses dos subúrbios de Paris não estão integrados, estão silenciosos, não querem ser notados. Para Cidália, estão silenciados — e é isso que a sua acção pretende contrariar. De certa forma, não o consegue, mas esta luta não devia ser apenas sua. Portanto, a sua voz faz a diferença e é por isso que a sua última imagem é dorida e ardente, solitária e liberta. Eis um sentido de leitura da derradeira cena, na qual muitos vêem o espectro do suicídio.
Um retrato não é um meio transparente, mas um convite a vermos como alguém viu. Canijo prossegue uma ligação fortíssima ao movimento da realidade, uma conexão vigorosa com os corpos e as coisas, que permite uma transfusão de energia do que é filmado para as imagens do filme. Veja-se o obsessivo trabalho de composição cromática que dá às cores uma vibração emocional. As imagens são distorcidas, ou melhor, “transfiguradas”, numa matéria hiper-realista — ou seja, numa matéria abstracta que condensa e exacerba traços da realidade. A vida que a Cidália e a Rita agarram pelas mãos, os gestos que as libertam do que as amarra, as palavras que gritam contra a falsa tranquilidade, ganham uma força que agita e altera tudo à sua volta.
Por: Sérgio Dias Branco*
* Coordenador de Estudos Fílmicos e da Imagem (Mestrado em Estudos Artísticos) na Universidade de Coimbra
**O autor optou por não escrever ao abrigo do novo acordo ortográfico
Próxima semana: Ana Teresa Peixinho