1.Se alguém mente deve ser político… A crer nas aleivosias que se atiram aos políticos, a mentira seria uma das falhas humanas mais detestáveis. E no entanto ai daquele que não mente! Seria rapidamente engolido pela voragem do parceiro, do grupo ou da comunidade. Mentir (saber mentir na justa medida) é preciso porque o sistema social, a vida, se construiu à volta da mentira diluída na verdade, um cocktail de “saber viver” para não sermos ingénuos, o que nos destruiria. E até certo ponto podemos dizer que a vida sem mentira, sem um pouco de disfarce, seria insuportável. Custa muito é admitir as nossas mentiras. Assim, na nossa ótica, as mentiras dos outros, dos nossos parceiros, dos nossos colegas de trabalho, sobretudo dos nossos políticos (de que planeta vieram eles?) é que são execráveis. As nossas mentiras encontram desculpas fáceis: fugimos ao fisco porque o Estado nos rouba; metemos a cunha mas foi só um jeitinho, não prejudicou ninguém; escondemos as coisas ao parceiro porque nos faltou ao respeito ou há uma margem da vida que é íntima; etc.
E em que áreas é que mentimos em público e em privado? Dizem alguns estudiosos do ramo que mentimos sobretudo quando falamos dos inimigos (mesmo dos próximos), do sexo, do dinheiro. Mentimos quando disfarçamos a moeda que damos no ofertório da missa, quando arranjamos uma desculpa para um atraso ao serviço, quando disfarçamos o telemóvel ao volante, quando sorrimos ao nosso superior, quando queremos dizer mal de alguém. Mas também quando falamos de… livros. Deixemos os primeiros tópicos, amplamente consensuais e passemos aos livros.
2.Se num inquérito de jornal alguém lhe perguntar o livro ou livros que anda a ler ou que leu recentemente, sentir-se-á constrangido diante da pergunta? Eventualmente sim se não andar a ler nada e nesse caso tenderá a dar uma resposta bem pensante ou politicamente correta, inventada pois então. Porquê? Porque ler continua a ser uma “vaca sagrada”, ficando os não-leitores fora do círculo dos “escolhidos”. Foi a escola, a família e os media que nos incutiram esta ideia. E se lhe perguntarem se leu autores como Miguel Torga, Virgílio Ferreira ou José Saramago, vai dizer que não? A dissimulação que nos leva a esconder ou travestir para os outros a nossa real situação pessoal ou as nossas contas bancárias, leva-nos também a procurar o politicamente correto quando somos confrontados com aquilo que “deve ser” na leitura.
3.Imagine agora um degrau mais acima. Que lhe pedem que fale de um livro que supostamente deve conhecer ou que já disse que conhecia mas realmente não conhece. É de meter medo? Nem por isso, se defendermos a tese de Pierre Bayard* segundo a qual é possível sermos ótimos não-leitores. Em primeiro lugar, diz ele, mesmo os grandes leitores leram um baixo número absoluto de livros. Em seguida, ser culto não é tanto ler muitos livros mas mais saber situar-se no conjunto e saber que os livros formam conjuntos, saber safar-se sem ser afogado por livros. Deste modo, um leitor culto é capaz de se situar num livro sem o ler integralmente e uma leitura circular, em diagonal ou com saltos ou ainda uma leitura de um livro por aquilo que outros dizem dele pode ser uma ótima leitura. No limite pode falar-se de um livro sem sequer lhe ter tocado e até a abordagem de alguém que não leu o livro pode trazer uma originalidade que uma leitura real não traria.
4.Conclusão: é à palavra “vergonha” que Pierre Bayard quer chegar. E ele quer dizer que não devemos ter vergonha de falar sobre um livro que não conhecemos, porque a “culpa” que nos querem colar é algo de profundamente injusto. Para além de podermos falar bem de um livro sem o ter lido, a verdade que destinamos aos outros é menos importante que a verdade de nós próprios, já que aquela nos tiraniza numa exigência de ser culto. Por outro lado, um livro é uma forma móvel que «nos confronta com a nossa insegurança e com a nossa loucura», mas também é, para além de si próprio, tudo aquilo que os discursos sociais podem dizer dele, alterando também a nossa noção sobre ele. Cada um de nós, no contacto (livre) com o livro vai-o construindo como um objeto no qual projetamos a nossa realidade, tornando-o assim num «objeto alucinatório» e tornando a leitura numa «travessia». Falarmos sobre um livro é assim lermo-nos aos outros e ler os outros, misto de descoberta e desvendamento. É pois a nossa relação com os livros que é aqui posta em causa: uma atitude supostamente falsa é, para Bayard, a mais correta face ao livro, se ela for livre. Liberdade, criação, invenção. Porque não, se for esta a nossa verdade?
* Pierre Bayard, “Como falar dos livros que não lemos?”, Ed. Verso da Kapa, Lisboa, 2007 (numa péssima tradução)
Por: Joaquim Igreja
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