O que fazer no último dia do ano? Para muitos um dia memorável, para mim apenas um dia aborrecido findo o qual toda a gente deverá estar feliz com passas enfiadas na boca enquanto espera as doze badaladas, desejando uns aos outros um ano novo melhor que raramente o será e este, o de 2012, de certeza que não. Enfim, como sempre fui um desalinhado, resolvi transformá-lo num dia produtivo para corpo e mente. Equipei-me a rigor, peguei na minha BTT e no jipe e rumei à Estrela. Objetivo: O comércio do Ti Branquinho em plena serra. Deixei o Land no alto de Famalicão e comecei a pedalar. Estava um frio de rachar, mas um ar delicioso. Aquela subida depressa me fez aquecer. Rumei ao Fragusto. Algumas árvores estão despidas, outras, como os pinheiros e as pseudotsugas, exibem cristais de gelo nas folhas. O chão crepita à minha passagem, está expandido devido às baixas temperaturas noturnas que lhe fizeram crescer gelo. Mas o sol começa a brilhar e o dia vai aquecendo devagar e eu já há algum tempo despi o cortavento.
O Fragusto ficou para trás e enfrento a subida para a Asinha (o local do parapente), está quase intransitável, ravinada e, com as suas facas de xisto apontadas aos pneus, espera-me desafiadora. Ultrapassada com alguma dificuldade e suor, atinjo o topo. Agora é sempre a descer até à base do Corredor de Mouros, ainda livre de aerogeradores mas não por muito tempo, será o preço a pagar para que o país não pague taxas de emissão de carbono, mas que vai ser um atentado à paisagem pura daquela zona, lá isso vai. Mais à frente o cruzamento para a Assedasse, espreito a ver se o meu amigo Hermínio já anda nalgum dos “panos” a guardar ovelhas. Ainda é cedo. Sigo pela esquerda ao longo da curva de nível. À minha direita um majestoso vale onde o jovem Mondego ainda corre límpido e gelado. Chegado à cruz das Jogadas está na hora de comer a bucha porque a “parede” que me vai levar à Pousada de S. Lourenço está mesmo à minha frente.
Aproveito a pausa para inspirar profundamente aquele ar. Apercebo-me que ainda não vi vivalma – é bom sinal. A serra ali está em paz, em contraste com o outro lado cheio de “lisbónes” e “portónes” e barulho e lixo. Ainda bem que o betuminoso ainda aqui não chegou. Arranco e preparo-me para mastigar dois quilómetros bem empinados, no fim dos quais o planalto de campo de Romão me anuncia ao fundo a Pousada de S. Lourenço. Entro na Nacional e dirijo-me às Penhas Douradas, mas não viro para lá, sigo em direção ao vale do Rossim. Algumas curvas e contracurvas depois chego ao “oásis” daquele lado da serra. Duas horas e meia depois de ter posto pé na terra chego ao Ti Branquinho, situado uma centena de metros antes do cruzamento para a barragem do vale do Rossim. Aquele comércio, em madeira, com um ar temporário, que o tempo se encarregou de tornar definitivo, misto de bazar e snack-bar, já me salvou algumas vezes. Reencontro-me com a simpatia e a hospitalidade da Judite e do Roberto e da filha deles, a Carina. São “velhos” amigos. Há já alguns anos que deambulo por aquelas bandas. Já ali cheguei algumas vezes enregelado, outras esgotado e outras enregelado e esgotado. É o único local nas redondezas, fiável, onde nos podemos retemperar.
Lá dentro uma velha salamandra emana calor onde podemos aquecer-nos e secar-nos enquanto ganhamos forças com uma enorme e deliciosa sandes de queijo da serra e presunto em pão do Sabugueiro. Neste dia rimo-nos enquanto recordámos aquela vez em que cheguei, me sentei e só comecei a falar uns minutos depois. A Judite só me dizia: “Oh professor você hoje não vem bem” e eu, branco, lentamente e por gestos dizia-lhe “Já vou estar”. Tinha feito um Valhelhas-Poço-do-Inferno-Torre-Rossim claramente com pouco “combustível” e abaixo de forma e tinha chegado lá com as reservas mesmo a zero. Sabia que iria ficar bem porque teria uma palavra de conforto deles e um tratamento VIP e que depois poderia seguir viagem completamente retemperado e restabelecido. É essa a importância daquele local e daquelas pessoas. Estão no sítio certo, sempre, faça chuva, neve, gelo ou sol, qualquer viajante terá ali um porto de abrigo a 1.400 metros de altitude. Bem-hajam!
Por: José Carlos Lopes
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