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Arquitectos, engenheiros e obras de arte

Razão e Região

Existe uma disposição legal (DL, 26/2010, de 30.03) que obriga a que construções ou reconstruções de simples edifícios particulares exibam publicamente em material imperecível o nome dos directores das obras. O que me impressionou nos termos do artigo 61 do referido DL foi a qualificação do material: «imperecível». Talvez mais do que a exigência de todos os edifícios deste País passarem a ter uma autoria pública e perenemente exposta. Ao que me dizem, antes, o dever de exposição referia-se aos autores dos projectos. O que era mais interessante para uma boa discussão. Agora, com o nome dos directores de obra, a discussão deixa de ser tão interessante para passar a ser quase absurda, tratando-se de uma responsabilidade de natureza funcional e técnica. Mais interessante seria discutir os direitos de autor e a exigência de exibição pública e perene da autoria. Como acontece nas obras de arte. Um quadro exibe para todo o sempre o nome do autor. E vale consoante a assinatura. Esta exigência legal, por isso, dizem alguns, encontra justificação semelhante à destas obras de arte. Um edifício é, afinal, a materialização de uma ideia com pretensões não só funcionais ou instrumentais, mas também estéticas. Afinal, não foi sempre a arquitectura uma arte com elevado direito de cidadania? Para quem, como eu, viveu dez anos em Roma, bem sabe que em certas cidades se pode respirar quase ao ritmo da intensa beleza arquitectónica que nos invade ao virar de cada esquina. Claro! Sabe-se a autoria de cada peça arquitectónica: Michelangelo, Bernini ou Borromini. Mas também Renzo Piano, por exemplo, com o Parque da Música. Para não falar das grandes obras da Roma antiga, embora sejam mais conhecidas pelo nome dos imperadores do que pelo dos seus projectistas e construtores. Conhece-se a autoria mesmo que lá não esteja inscrita. Claro, ninguém tem dúvidas acerca da natureza desta arte fantástica. Mas a questão que se põe é a de saber se tudo o que é produzido no âmbito da arquitectura é arte. Se um arquitecto, só pelo facto de o ser, é um artista. Tal como se põe a questão de saber se um professor de filosofia é, naturalmente, um filósofo. Claro, pode não ser um artista, mas seguramente é um autor, com direitos garantidos. É certo que muitos vêem este dispositivo legal sobretudo como uma exigência de transparência e de responsabilidade. Projectos excessivos, bons ou maus, pelos quais têm de ser responsabilizados os seus autores. Diria mais: para o bem e para o mal. Outros vêem-no como um direito à justa publicitação de uma autoria. Como se vê, há muito por onde abordar esta questão. Ora, o meu ponto é este: sendo certo que o direito de autoria é, pelo menos para mim, sagrado, faz sentido, no plano das construções domésticas privadas, individuais, onde materialmente a autoria resulta de um complexo processo de partilha de exigências, gostos e idiossincrasias, fixar legalmente a obrigatoriedade de pública exibição da autoria e da responsabilidade formal, de forma perene? E, ainda mais, quando nem sequer se trata de uma autoria de projecto? E porque não as autorias do pedreiro-chefe ou do carpinteiro-chefe? Esta perenidade, de que fala a lei, não irá levantar problemas no futuro quando o proprietário decidir alterar parcialmente o edifício, contratando outro director de obra? Terá o proprietário de pedir autorização ao antigo director da obra? Poderá remover livremente o seu nome? Assim sendo, por que razão os materiais devem ser imperecíveis? Acrescenta-lhe o nome do novo? E o nome do proprietário, enquanto interveniente fundamental no processo, uma vez que é ele que define as funcionalidades, que escolhe os materiais, que comunica a sua ideia ao projectista, negociando permanentemente o processo, já que é ele que paga integralmente a obra? Neste tipo de obras do que se trata é mais de um processo de partilha do que da projecção de uma livre subjectividade criativa! Também por isto, esta exigência não colide com o direito de propriedade privada e com os próprios direitos decorrentes da retribuição financeira pela prestação dos serviços pelo director de obra? E se o argumento for a publicitação de uma responsabilidade, então qual é a função da entidade fiscalizadora pública e que valor têm as normas que permitem o controlo pelo cidadão comum (e designadamente pela imprensa) dos processos administrativos tutelados pelas câmaras? E se o argumento for o da autoria, não é legítimo perguntar também se todos os edifícios são obras de arte? O que me parece é que este dispositivo legal condensa em si, nos termos em que está formulado, mais um dos vícios do politicamente correcto. E o que seria interessante era saber quantos edifícios já exibem o nome dos directores de obra. E, já agora, o dos projectistas. De forma perene e não para o dia em que lá for a fiscalização!

Por: João de Almeida Santos

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