O desafio estava lançado. Depois da tentativa falhada há um ano de cobrir a distância, de bicicleta, entre Guarda e Albufeira em menos de 24 horas, resolvemos tentar de novo, com o estímulo adicional de ultrapassar a fasquia dos 500 quilómetros.
Herdeiros do espírito aventureiro dos nossos antepassados e inspirados pela máxima, sem dor não há glória, partimos da Guarda à meia-noite de sábado, 30 de Julho. Eu, o Alex Guilhoto e o Daniel Andrade.
Armados com lanternas LED e luzes intermitentes traseiras, saímos à hora marcada, com o apoio de amigos e família. Corações acelerados – o bom stress. Os primeiros quilómetros na VICEG (sempre na berma), a opção de atalhar por Alfarazes e, como quem se mete por atalhos…, fomos presenteados com um furo, um cantil e uma luz traseira perdidos. Começámos bem.
A opção de viajar de noite é óbvia. Menos calor, menos trânsito, menos desgaste e concentração absoluta no pneu da bicicleta da frente. Rolar em pelotão, embora pequeno, tem a vantagem de permitir descansar a quem persegue. A receita foi passada logo no início: cada um tomaria a cabeça do pelotão durante cinco minutos, findos os quais apartar-se-ia e viria para a cauda. Isto permitiu-nos horas de descanso, sem vento pela frente. Nas subidas ou nas localidades, ou quando nos desse na bolha, abandonaríamos a formação e poríamos a conversa em dia. Outra decisão importante foi a de minimizarmos os tempos de paragem. As contas à partida eram fáceis de fazer. Supondo uma média de 25 km/h, daria 20 horas a pedalar para cumprir os 500 km, pelo que teríamos apenas 4 horas para descansar, se quiséssemos alcançar o objetivo. Parecia curto. E esse fantasma acompanhou-nos o tempo todo e assombrar-me-ia na fase final.
A primeira paragem foi na fonte de Alpedrinha, cerca das duas da manhã. Reforço alimentar e água com fartura. Tínhamos toda a noite pela frente para rolar em autonomia. O Ricardo “Sopinhas” Teixeira iria ter connosco a Alter do Chão, por volta das oito, com o carro de apoio. Os primeiros 100 km foram pulverizados em pouco mais de 3 horas. Atravessámos Castelo Branco, não se via vivalma, apenas belos jardins e arrelvamentos. Sabíamos que só voltaríamos a ter água em Vila Velha de Ródão. Mais à frente, na antiga IP2, no sossego absoluto, desligámos as luzes apenas para podermos contemplar um céu mais estrelado que o habitual. Um braço da Via Láctea parecia saudar-nos. O cheiro intenso a plantas que estiveram a tostar durante o dia acompanhou-nos até Ródão, onde foi substituído pelo pivete a pasta de papel. Lá, miraculosamente, uma fonte. Mais um reforço. A GNR passou e ter-se-á interrogado relativamente ao que fariam três tipos, no fim do mundo, às 4 horas, de bicicleta. Portas do Ródão – dizem que é o local mais estreito e profundo do Tejo. Meteu respeito passar naquela ponte sabendo disso. Próxima paragem, Nisa. Não sem antes sentirmos o desconforto de um vento frio e húmido que nos acompanhou até à terra do Breyner. No Alentejo começa-se cedo a trabalhar e por isso, foi com muito agrado que às 5h45 parámos num café bem no centro. Cinco coca-colas, seis bolos e três cafés depois ganhámos uma alma nova. A luz começava a vencer as trevas e um belo nascer do sol lembrava-nos que tínhamos passado toda a noite a pedalar e que ainda teríamos outra pela frente, antes de podermos descansar a sério. O ritmo voltou a subir, mantínhamo-nos bem acima dos 25 km/h de média.
Alter do Chão. Nada do Ricardo. Continuámos. Ele tinha o nosso trilho no seu GPS, pelo que encontrar-nos-ia mais à frente. Próximo de Cano, perdidos no Alto Alentejo, ouvimos o som celestial da buzina do carro de apoio. Lá vinha ele cheio de comida, bebida e apoio moral incondicional. O Ricardo adora pedalar e invejou-nos, por uns momentos. Deixámos a carga. Mochilas e luzes ficaram. As costas aliviadas, a barriga cheia de melancia e continuámos. Casa Branca, Vimieiro e Arraiolos. Daí a Évora foi um fósforo, já com o fito no almoço. Chegámos ao meio-dia. Comida rápida. Teve que ser no Mac. Sopa de feijão, um hambúrguer, um “wrap” e um café. Às 12h45 estávamos a andar. O ano passado tinha sido ali que tínhamos desperdiçado três preciosas horas a descansar. Optámos por arrancar logo, a um ritmo mais pausado. O calor começava a apertar. O inferno alentejano vinha aí. As longas retas pediam-nos para rodarmos em pelotão. Chegados à periferia de Portel, esperavam-nos três cervejas sem álcool, para animar. O Ricardo, incansável, substituía, em cada paragem, as bebidas dos cantis por outras fresquinhas. Deixámos Portel, entrámos no inferno. O Baixo Alentejo, quem o disse belo, não deve ter sido a bordo de uma bicicleta sob um sol escaldante de 39 graus. Eu detestei-o e praguejei, praguejei tanto! Aquelas retas infinitas deitam abaixo o mais intrépido. As conversas e os risos acabaram. Entrámos todos em piloto automático. Mas Beja nunca mais chegava. No horizonte os enormes silos de cereais pareciam uma miragem. E, de repente, acordo o Alex. – Alex, Café! Estávamos em São Matias. Lá dentro, ar condicionado. Os três com sinais de desidratação. O meu estômago, sem comentários. O Alex sentou-se, bebeu e adormeceu, quase instantaneamente. Hidratámos o possível. E pusemo-nos em marcha. Se não tivéssemos parado, teríamos falhado na certa.
O sol começa a baixar no horizonte e o moral a subir. Castro Verde, Ourique. Paulatinamente o enérgico Daniel, começa a deixar de falar e de ter força. Estava sem pilhas, que é como quem diz, com uma fome canina. Parámos na Aldeia dos Palheiros. O meu estômago tinha acabado e estava a acabar comigo. Comi meia bifana, não passava nada. Agora era eu que estava na mó de baixo. Ainda faltavam 70 km e tínhamos a Serra do Caldeirão pela frente. As hipóteses começavam a estar contra mim. Arranquei antes deles. Já me conheço e necessitava de encontrar o meu ritmo. Não queria que a missão falhasse por minha causa. Eles já me conhecem e respeitaram a minha decisão. Apanhar-me-iam mais à frente depois de termos vencido a barreira psicológica da serra. É nestes momentos que nos distinguimos dos outros animais. Quando conseguimos pôr a mente a vencer o corpo. Vamos à reserva das reservas buscar a energia que falta e focamo-nos no objetivo final. A minha estratégia acabou por resultar: venci a serra e ainda servi de lebre ao duo perseguidor. Passaram por mim que nem um tiro e eu colei-me a eles como pude. Os últimos 70 km foram feitos à média de 35 km/h (incluindo a serra). Rodámos muitas vezes acima dos 60 km/h e Albufeira, mais propriamente, a praia da Falésia, o Alfamar chegou ao fim de 22 horas e meia. À nossa espera uma comissão de boas vindas e um sumo de laranja do Algarve que não trocaria por nada naquele momento. Missão cumprida. Os números ficam: 505 quilómetros em 17h45m, à média de 28,5 km/h. No dia seguinte só mar e sol e um orgulho indisfarçável.
Por: José Carlos Lopes