Nos compêndios de Miraculogia, disciplina suscetível de se definir como simplesmente “o estudo dos fenómenos que não têm explicação natural”, inserem-se situações que, não beneficiando em exclusivo as pessoas singulares, respeitam ao plano dos coletivos humanos, quando não ao das próprias nações. Lembramo-nos da manifestação dos chamados “Anjos de Mons”, seres etéreos, surgidos nos céus da Flandres, que levariam à vitória o Corpo Expedicionário Britânico, implicado numa das primeiras batalhas da Grande Guerra. Valesse o que valesse o acontecimento, o ceticismo dos agnósticos, o repúdio dos ateus, ou a fé dos crentes, não faltariam testemunhos da sua realidade, sujeitos à interpretação que deles se quisesse efetuar.
Fala-se ainda amiúde, mas aqui em termos muito mais pragmáticos, se não absolutamente chãos, da súbita regeneração de certos países, precipitados no caos, na decadência, ou na crise, e atribui-se ao seu triunfo também natureza miraculosa. Guardam-se variados exemplos disso nas páginas da História Contemporânea, e refere-se “o milagre alemão”, “o milagre italiano”, “o milagre japonês”, “o milagre americano”, e até mesmo “o milagre irlandês”. E o que desse panorama se colhe é a perceção de haverem tais potências superado os seus desastres, e os seus erros, e reencetado a vida, de cabeça erguida, e servindo de modelo ao resto do mundo.
Nada existe por enquanto que se deva apropriadamente designar por “o milagre português”, e apenas nos coube direito a um humílimo, posto que de inapagável memória, “milagre orçamental”. Se aspirássemos no entanto a ombrear em energia milagrosa com as pátrias a que nos reportámos, impor-se-nos-ia porventura retroceder à curta fase que decorre entre 1498 e 1521, e reacomodarmo-nos portanto naquele ninho de nostalgias que em nós substitui a apetência de futuro. Sem o espalhafato de uma corte nova-rica e exibicionista, e sem o grito de bravata que manda “morrer sim, mas devagar”, dificilmente tomamos consciência de nós.
Pretende-se sugerir com tudo isto que nos achamos no limiar de uma era em que, se desejarmos sobreviver, o brado por “Milagre!” se mostra a todos os títulos inadiável. E seja qual for a morfologia de que o extraordinário venha a revestir-se entre nós, não se duvide de que sem ele não nos governamos para bem, ou para mal. Três ou quatro rostos de luz se perfilam já no horizonte, aptos a protagonizar a maravilha que nos redima, um austero, outro discreto, e outros dois arrebatados.
Mas assim como assim, diga-se ao ouvido, melhor será continuarmos na empolgante espera de Sebastião, não vá azedar-se entretanto o caldo da nossa cultura, e deixarmos enfim de sermos o que somos.
Por: Mário Cláudio