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O que eu passei para escrever este artigo

Diário Interior

Como todas as semanas, sentei-me em frente ao computador na madrugada de segunda para terça para escrever o Diário Interior. Esta semana, com a firme decisão de escrever sobre a fúria justicialista contra putativos incendiários, mandar uns bitaites acerca do exílio voluntário de Taylor da Libéria e comentar mais umas leituras, nomeadamente as comédias de Veríssimo.

Preparado para a tarefa – com litros de chá e Coca-Cola a gelar no frigorífico e a 8ª edição do Dicionário da Porto Editora ao lado – começo a teclar as datas dos dias da semana, para retomar a velha tradição de escrever realmente um diário.

Ao lado, a gata Constança dormita esparramada no chão, para aliviar o calor e minorar a condição de celibatária forçada. No leitor de CD’s, uma série interminável de clássicos dos anos 80, a década mais kitsch do século XX.

Na altura precisa em que verificava no dicionário o sentido da palavra “marfolhar”, entra pela janela um pássaro esquisito que não consegui identificar de imediato. O bicharoco, com alguma arrogância, pousou em cima da televisão e disparou, sem sequer cumprimentar: “Porque é que tens esta merda na SIC Radical? Para ver o Gostas Pouco, Gostas, meu tarado? Muda mas é para o Canal História e tira-me imediatamente estes pirosos dos Duran Duran do sistema de som.” Era uma rara espécie de pássaro, percebi depois, um Cultis Acontecius.

A Constança olhou para ele, depois para mim e pareceu querer dizer: “Por mim põe no canal que quiseres. Não ponhas é na TVI, que quero dormir.” O pássaro, olhando para as estantes, continuava a falar comigo: “Ouve lá, ó gordo armado em intelectual, onde é que tens os livros do Mia Couto e do Pepetela? E a estante do Saramago? E aqui nos ensaios políticos não vejo nenhum Chomsky.” Era um Cultis canhoto. Ao contrário dos seres humanos, os canhotos são significativamente maioritários na espécie dos Cultis Acontecius.

Sem paciência, mas tolerante o suficiente, deixei-o continuar. “Que grande palhaço me saíste. Este montinho de BD erótica e livrinhos da Marvel, ó totó? E as Playboy’s, por baixo das Maxim’s? Pensas que enganas alguém, pornófilo amador?”

Um homem ainda aguenta uns artigos da Clara Ferreira Alves a protestar contra os portugueses que não lêem na praia. Agora não há é moleirinha que resista a um passaroco paladino da cultura oficial do Cartaz do Expresso. Sem qualquer risco para a extinção da espécie – há mais uns quantos milhares iguais pelo mundo fora – atirei-me a ele. A ave, fazendo valer a sua biologia, voou pela sala. Fugiu para a cozinha, onde fez uns comentários jocosos sobre uns livros de culinária que jazem, sem qualquer uso, ao lado do microondas.

A gata, numa reacção típica, levantou-se, espreguiçou-se e voltou a deitar-se, desta vez sobre o seu lado direito. Há manifestações simbólicas que valem mais que mil acções. É destas coisas que o companheirismo é feito.

Fui atrás do pássaro para a cozinha. Lá estava ele a declamar poemas de Manuel Alegre e Eugénio de Andrade, em versos intercalados. Numa atitude desafiante, encostou-se a um canto da cozinha, à espera. Dei-lhe umas cinco pancadas com o cabo da vassoura, uns três pontapés depois de ele já estar combalido e meti-o debaixo da torneira do lava-louças. O bicho, temendo pela vida, ofereceu-se para negociar. “Ó caixa-de-óculos, se não me bateres mais, ofereço-te a colecção completa de prefácios do Mário Soares.” Acabei por o deixar ir embora, não sem que antes me prometesse decorar os discursos de Ronald Reagan e ir a casa do Prof. Rosas debitá-los em voz alta. Há dias em que um tipo se sente um verdadeiro educador.

O artigo para O Interior há muito que tinha ficado esquecido.

Por: Nuno Amaral Jerónimo

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