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Ciclismo, esse desporto de cavalheiros

O mito do ciclista arrancado à enxada e alimentado a sopas de cavalo cansado já era.

A Volta a Portugal em Bicicleta dá-nos anualmente a oportunidade de vislumbrar um Portugal rural que todos os anos se reúne num piquenicão de beira de estrada, de garrafão e tacho, a acenar aos homens do pedal e a lutar de forma feérica por um brinde de plástico. E quem olhar para além do pelotão e do povo a gritar verá como está lixada a paisagem, entre casas desfiguradas, florestas queimadas e sempre, sempre o entulho e a poluição visual. Já o ciclista em si está cada vez mais sofisticado e não é o matarruano de antigamente, arrancado às berças, às obras ou à enxada. E, depois de anos de declínio, a estratégia de sprint das equipas é assunto de classe A. Ora isto carece de explicação.

Não há muitos anos, o ciclismo de estrada por equipas era uma prática moribunda e nem as marcas de atum em conserva lhe pegavam. Mas a Volta, ui, era um “must” para os jornalistas, enfim, todos queriam ir porque todos queriam ir. Vi o meu director de então zarpar num descapotável cedido por uma marca com destino a hotéis de charme agendados pela secretária. Movimentei-me. E fui escolhido. Nesse ano começaram os cortes financeiros nos jornais. Fiz a Volta num Clio 1.1 e dividi o quarto de pensão com outro jornalista que ressonava como uma serradora engasgada numa corrente de aço. E fiz o país a uma média de 40km/h atrás do pelotão, num carro apodrecido que arrotava para dentro. Já que os jornalistas ‘de ciclismo’ saltam de press-room para press-room sem precisarem de ver um único ciclista. E desprezavam os ‘não-experts’.

O ciclista nacional tinha como padrão Joaquim Agostinho, o mito que parava, ia beber uma Sagres, arrancava e apanhava o pelotão e ganhava a etapa. Um certo herói do Estado Novo, o combatente nacional, teso, puro e natural. Ou o Velho Lau, que ganhou uma volta aos 40! O ciclista sempre foi recrutado da aldeia, faces tisnadas, peito branco e seco e perna apresuntada. E muita capacidade de sofrimento, mesmo com um bife de lombo roubado no hotel colocado entre as nádegas e o selim. E capacidade de trabalhar para um líder… O aguadeiro tem de se atrasar para ir buscar bidões de água para toda a equipa junto ao carro do director e regressar ao pelotão.

Horas nas motas da Volta desde as dez da manhã à pendura a ouvi-los a insultar-se no pelotão. Horas no carro do médico à espera de uma queda, a ver a capacidade atlética dos ciclistas para fazerem as necessidades em movimento, no carro-vassoura com o ‘vassoureiro’ a convencer no gozo um desgraçado a desistir. E, à noite, a magia da Volta, jornalista style: comezaina!

Mas as coisas estavam a mudar. Os italianos chegavam belos, garbosos, espelhados, bronzeados, cheios de gadgets e pareciam cavaleiros do pedal. O pelotão rosnava rancor com aquela vaidosice em licra num desporto de homens cuja concessão era rapar (não depilar!) as pernas. Mas nestas mariquices fashionistas os italianos têm sempre razão.

Havia já uma bikemania em ação. Começou pelo BTT e pelas bikes de milhares de euros, mas rapidamente os hipers as democratizaram a baixo custo. Actualmente, ao fim de semana, há largas dezenas de encontros por todo o território, parques, montes, serras é vê-los passar com as bikes nos tejadilhos. Portugal é o país da Europa onde ainda há crescimento de negócio. E agora é a moda dos estradistas – que também é um complemento ao BTT.

Já o facto de a filha do Velho Lau – Vanessa Fernandes – ter dado um impulso impressionante ao triatlo em Portugal faz com que a bike de estrada tenha também começado a ter saída. O ciclismo deixou de ser só a emoção da sirene da GNR a passar na aldeia para se tornar uma discussão sobre o cavalheirismo de Alberto Contador no Tour: o adversário deve ou não parar e esperar quando o camisola amarela parte a corrente?

Ora isto é o tipo de coisa que não se ouvia desde que Lord Bryoshoutlfork perdeu o monóculo na lama no dia em que o râguebi foi inventado.

Por: Luís Pedro Nunes

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