A insegurança constitucional imposta pelo orteguismo é directamente responsável pelo aumento da violência política que se vive na Nicarágua. De um certo modo, a coacção crescente sobre todo e qualquer movimento de oposição cívica também é a antecipação das reacções que possam vir a surgir no momento crucial da negociação (ou da barganha) parlamentar sobre a possibilidade da reeleição. De uma forma mais directa, isto significa que o regime – pois a violência é promovida de dentro do regime – se procura defender de qualquer veleidade anti-revolucionária. Sobretudo depois da crise hondurenha. O ambiente é cada vez mais tenso, sobretudo em Manágua, onde as paredes e muros se encontram literalmente inundados pelas palavras de ordem sandinistas, em especial desde Julho e das comemorações dos trinta anos da revolução. Comprovo o facto de dentro do microbus, onde continuo com a cara colada ao vidro e a cidade me vai passando diante dos olhos: “Viva la Revolución”; “Viva Daniel”; “Viva la Juventud Sandinista”; “Viva el 19 de julio”; “Viva el Comandante”; “Viva la roja y negra”. O oficialismo procura ocupar todo o espaço discursivo disponível na cidade, mesmo para lá do pretenso assédio aos meios de comunicação. Nada sobra, consciente de que a vitória sobre os traidores neoliberais – é esta a linguagem utilizada pelo canal de televisão sandinista – se joga em primeiro lugar ali, nas paredes e muros de Manágua. Mas vai mais além; salta deles e ganha as ruas e rotundas no confronto físico com entre os seus defensores e todo aquele que se manifesta contra. Neste mês de Agosto, tornaram-se comuns as agressões físicas a manifestantes anónimos, como os elementos da coordenadora cívica que foram atacados à paulada e à pedrada, enquanto se manifestavam diante da catedral de Manágua. Perante a impassibilidade das forças de segurança. O Nuevo Diario noticiou, com nomes e fotografias, que os atacantes eram membros da juventude sandinista e agiam de forma organizada, um procedimento a que, pelos mesmos dias, recorreu o chavismo. Lembro-me também de ter lido, durante o mês que passei em Estelí, relatos que descreviam o assédio do oficialismo aos funcionários públicos ao abrigo de acções de consciencialização democrática, em pleno horário de trabalho. Tratar-se-ia de abnegadas acções para explicar o funcionamento do estado e o sentido das reformas constitucionais propostas pelo FSLN. Não pude deixar de pensar num cerco que se aperta, onde os campos de batalha se multiplicam e a vitória total sobre a sociedade é o único objectivo que importa. Não posso deixar de pensar que a guerra civil na Nicarágua terminou há apenas trinta anos e que as feridas quase não tiveram tempo para sarar. Não posso deixar de pensar nas histórias de guerra e resistência que ouvi da boca de Edna, em Estelí, e de como a sua família assistiu à destruição da cidade, por três vezes, entre 1978 e 1979. Não posso deixar de pensar nas histórias de uma geração mutilada pela guerra.
O microbus prossegue pela Pista da UNAN e o cobrador vai gritando, em cada nova paragem, “¡Granada, Granada, Granada; vamos a Granada!” Movo o braço adormecido que descansa por cima das mochilas e procuro esgueirá-lo para dentro do bolso dos calções, onde guardei a nota de vinte córdobas suficiente para pagar a viagem. De repente, no meio da batalha discursiva que ocupa as paredes de Manágua, entrevejo uns rabiscos que não pretendem ser uma ode ao sandinismo e ao FSLN; antes, uma chamada de atenção à deriva revolucionária e às suas contradições. Num espaço vazio destinado a cartazes publicitários, alguém escreveu em letras pretas e maiúsculas: “Donde hay poder hay resistencia”, e assinou por baixo: M. Foucault. Assalta-me a solidão desse aviso num meio de um oceano de vivas à revolução. E a coragem de alguém que sabe mais, que intui para lá da gritaria da mole humana e não se deixa intimidar por ela. Onde há poder há resistência, avisa o escritor anónimo, nem que seja a sua própria, do alto de um espaço publicitário, por enquanto vazio. Avisa que é escusada essa fúria revolucionária dos que teimam em rabiscar a cidade e esgotar o campo discursivo. Onde há poder há resistência e pronto; é preciso viver com ela, reconhecê-la e conceder-lhe espaço. Onde há poder há resistência, qualquer que seja o poder e a sua filiação, por muito revolucionário que seja, por muito progressista, por muito popular que se proclame. Quão longa e bem conhecida é já a história do processo de institucionalização das revoluções. Mas no meio da vozearia revolucionária da Pista da UNAN, a citação de Foucault não é um mero aviso; também é um apelo solitário e desesperado ao regresso da normalidade da vida, com as suas contradições, paradoxos e tensões naturais que o poder político sempre tem a veleidade de querer limitar ou suprimir. A capital vai ficando para trás e o campo já se insinua nos aglomerados de casas cada vez mais dispersos. Pouco depois estaremos em Masaya, e depois em Granada. Há gente que entra e que sai do microbus quase em andamento, em cada rotunda, em cada poste da estrada, na volta de cada cruzamento. E o cobrador lá vai apregoando, com a sua voz vigorosa e eficaz, “¡Granada, Granada, Granada; vamos a Granada!”.
Por: Marcos Farias Ferreira