Nesse tempo que ainda não se afastou muito de nós, as famílias, mesmo as mais ricas, tinham uma prima pobre. E até nas mais pobres havia uma prima ainda mais pobre do que elas. Essa prima era esquecida e lembrada. Numas alturas, provocava vergonha e ira: “Que desplante!, andar a dizer por todo o lado que é da nossa família.” Noutras, gerava compaixão e era usada para mostrar bons sentimentos: “Não nos podemos esquecer dela. Sempre é nossa prima, embora já afastada!…”
Para se poder olhar, com boa consciência, aquela pobreza, faziam-se genealogias da desgraça, justificando-a. Dizia-se: “O pai dela não tinha juízo nenhum. Meteu-se em negócios esquisitos!” Ou então: “O avô arruinou-se. Gastou tudo no jogo e com mulheres!” Essa prima pobre era solteira ou viúva. Vivia de uma pequena pensão, contada e gasta centavo a centavo. Quando não estava num asilo (e então era conhecida por “a prima do asilo”), morava num andar alto de um prédio sem elevador. Sofria do coração e vinha pouco à rua. Se saía, ao regressar a casa, demorava muito tempo a subir a escada, arrastando-se degrau a degrau e parando nos patamares até chegar ao dela, asfixiada e resfolegante.
A casa onde habitava era grande, com um corredor longo e um pé-direito altíssimo, o que acentuava ainda mais a solidão e o vazio. Fria no Inverno (“um gelo”) e quente no Verão (“um forno”), tinha fendas e humidade nas paredes. Pouco a pouco, o que lá existia foi sendo vendido para fazer face à penúria. Restavam apenas os móveis indispensáveis e alguns objectos de grande estimação. A vida decorria ali em três divisões. A prima cozinhava e comia na cozinha, dormia num quarto interior, sentava-se na sala a costurar (era melhor dizer: a remendar), e, mais tarde, a ver televisão, ainda a preto e branco. Em tempos, tinha recebido, num quarto independente com porta para a escada, uma hóspede, mas zangaram-se logo, por causa das limpezas. Houve disputas e discussões. Ela nunca mais quis repetir a experiência, lamentando-a: “Uma vez já me chegou. Não quero o inferno em casa!”
Na rua, vestia sempre de escuro (estava de luto por toda a gente e até por si própria). Usava uma roupa gasta, puída, fora de moda. Mas não se lhe descobriam nódoas. Tinha muito orgulho na sua limpeza. Gostava que dissessem: “É pobre, mas é muito asseada.” Os sapatos eram rasteiros e já deformados pelos anos e pelos passos. Em casa, usava chinelos, vestindo uma bata ou um robe, com o avental por cima. Aparecia assim a espreitar à janela (“para apanhar um pouco de ar”, esclarecia).
A prima pobre era a vergonha da família – e ela era a primeira a sentir o peso dessa vergonha. Tímida, modesta, fugidia, silenciosa, humilhavam-na e humilhava-se. Nunca estava à vontade em lugar nenhum. Sentia sobre si e a sua pobreza olhares de compaixão ou de reprovação. E não sabia qual deles preferir. Complexada, se pudesse tornava-se invisível. Esquecida, só se lembravam dela no Natal ou nos enterros. Nos baptizados e nos casamentos, ignoravam-na – a sua miséria estragava a “estética das cerimónias” e entristecia o que se queria alegre.
No Natal, chegava de eléctrico à casa dos parentes que a convidavam (“sempre é nossa prima”). Aparecia com um casaco que tinha sido da avó e, na mão, uma mala que tinha pertencido à mãe, com a pele já muito coçada pelo uso. Entrava e começava logo a pedir desculpa por ter vindo: “Não quero incomodar! Só vim para não fazer desfeita!” Colava-se à parede do corredor e ia para um cantinho da sala de estar. Sentava-se levemente, lentamente. Envergonhada, punha a mala sobre as pernas, tapando-a com as mãos para que não se visse o seu mau estado.
Calada e enfiada, sorria. Tossia, com uma tosse seca e nervosa. Quando iam para a sala de jantar, era a última a entrar. Andava com passos pequeninos, como se estivesse sempre a mais. Destinavam-lhe um lugar na ponta da mesa, onde ficava apertada, entalada, desterrada, com as pernas magras a baterem nas pernas da mesa. Sentava-se na beirinha da cadeira. Comia pouco, com gestos tímidos, medidos, compostos. Hesitava a escolher os talheres e os copos. Gabava a comida com uma voz quase inaudível. Quando a convidavam a repetir, dizia: “Muito obrigado, mas fico bem assim!” E concluía: “Não estou habituada a comer tanto. Pode fazer-me mal.” Só nos doces abusava um bocadinho. Para festejar, até bebia umas gotinhas de vinho do Porto ou de anis.
No momento das prendas, abria o embrulho que lhe punham nas mãos trémulas e, perante a coisa insignificante que lhe destinavam (um lenço de assoar, uma chávena feia), exclamava, um pouco afogueada: “É tão bonita. Porque é que estiveram a incomodar-se comigo?! Eu não estou habituada a receber presentes. Ninguém me dá nada.”
A alegria crescia pela casa. Ela continuava ali, sentada na borda da cadeira, a olhar, com ar triste, aquele mundo que não era o dela. E a pedir desculpa por lá estar…
Por: José Manuel dos Santos