Olhou-me tímida mas sorrateiramente com uns olhos azuis de gato.
Sou a irmã.
E estendeu-me a mão grossa, num jeito rude. Mãos cortantes, ásperas, mas quentes.
É um desgraçado Senhora Doutora, é um pobre desgraçado e ainda o fazem vir aqui.
Foi um desgraçado toda a vida, se soubessem… Eu bem lhe digo, eu bem o aviso, mas, sabe, ele é um pobre coitado. Não me dá ouvidos. Já lhe disse tantas vezes “Oh Chico vai ao médico, anda vai ao médico, vai ao médico Chico que tu és muito nervoso, o Sr. Dr. dá-te uma medicação, anda que eu marco-te a consulta.”- mas nada, não quer saber, nem me dá ouvidos, e depois olhe, acontece isto. Ai Meu Deus, ainda bem que os pais não estão cá. Ainda bem que já se foram. Este homem dá cabo da vida de toda a gente. O que os pais sofreram por causa deste desgraçado. Nunca se fez homem. O que lhe faltou foi a tropa, se tivesse ido à tropa tinha saído de lá homem, ai tinha tinha. Assim, olhe, é um farrapo, vive como um animal, parece um bicho, só está bem atrás das vacas. Eu já tentei de tudo, mas não dá, não dá… E depois, coitadito, não percebe bem as coisas, ele tem problemas de cabeça. Mas é reles, eu até tenho medo dele, é magro mas tem cá uma força. Um dia botou-me as mãos, até fui ao Ministério Público, ainda os pais eram vivos. Mas depois retirei a queixa, afinal somos irmãos. Mas sempre foi muito mau para mim! E eu que nunca lhe fiz mal, antes pelo contrário, só bem, só bem. E sofri muito toda a vida por causa dele. Começou logo quando ele nasceu. Até lá eu era uma criança muito feliz. A minha mãe que Deus tem adorava-me, mas assim que ele nasceu pôs-me num Colégio de Freiras. Amarguei bem com as Freiras. E ele no bem bom com os pais. Quando ia de férias para casa não podia tocar no menino… começava logo aos gritos e a minha mãe enfardava-me e de que maneira, levei cada tareia por causa dele, e sem culpa nenhuma. E foi sempre isto toda a vida. E depois ainda diz “Quem sofreu mais fui eu”! Mas o que é que ele sofreu? O que vale é que Nosso Senhor está lá no céu e vê tudo. E quem sofreu mais fui mesmo eu.
Mas acha que o vão prender? Ai que grande desgraça minha Senhora, quer dizer menina, desculpe, Senhora Doutora. E se a Senhora dissesse ao Sr. Dr. Juiz que ele não está bom da cabeça, que o levem a um médico e o internem, sim, era o melhor, interná-lo. É que sabe eu nem posso entrar lá em casa. Quando lá vou põe-me logo de lá para fora, e a casa é dos dois, da herança dos meus pais. E diz que não tenho lá nada, que ele é que cuidou sempre dos pais. Então se eu moro tão longe!! Graças a Deus tive cabeça, não fui como ele, e estudei e pronto tive uma vida organizada. E aos meus pais nunca lhes faltou nada, uma vez até fui buscá-los para irem passar o Natal comigo, mas a ele não o quis lá, era o que faltava! Para quê?! Para haver guerras no Natal, época de paz e amor …na! Veja lá Senhora Doutora, veja lá o que pode fazer por ele. Tenho tanta pena, é meu irmão o que hei-de fazer, é o sangue que nos puxa, por pior que ele seja, também não tem mais ninguém que lhe valha, só eu, só eu. Meu Deus, para o que havia de estar guardada. Todos temos a nossa cruz não é verdade? É interná-lo Senhora Doutora, é interná-lo.
Ai não pode ser neste processo?! Pois, pois, já percebi, este é outro assunto. Pois, mas se desse um jeitinho, assim um particular com o Sr. Dr. Juiz. Ai não pode ser… pois … mas olhe que era uma obra de caridade, e agora em época de Natal, temos de ser uns para os outros.
O Chico foi absolvido.
Diz que mais tarde a irmã pediu o seu internamento.
Diz que o Chico foi internado contra a sua vontade.
Diz que a irmã se arrependeu e quis retirar o processo.
Diz que o Juiz não permitiu e manteve o internamento compulsivo.
Diz que o Chico sofre.
E diz, que a irmã sofre tanto quanto ele.
Por: Carla Freire