«Os gémeos sabem sempre o chão que pisam, pelo menos no momento», diz Linda Goodman nessa delícia que é o seu Guia Astrológico (o autor nasceu a 6-VI-1936).
Esta força do óbvio que se desprende da obra de Malangatana não apenas o afirma como um notável artista; ao mesmo tempo, compele-nos a darmos-lhe uma extrema atenção – e ao termos sempre bem presente que nenhuma arte é entretenimento. E, que a arte não seja entretenimento di-lo, também, Georg Baselitz em entrevista a “El Pais”, precisamente publicada no dia da inauguração da exposição do moçambicano. É que a arte de Malangatana (refiro-me à pintura e desenhos expostos no TMG) é, desde logo, um requisitório contra o Colonialismo. Também é um fiel e denso retrato da antropologia e idiossincrasia negras; acima de tudo, porém, é um requisitório.
E é uma pintura sobre uma certa África, isto é, datada (no tempo, claro) com precisão, mas não é, muito longe disso, uma pintura exclusivamente africana, uma pintura exclusivamente autóctone. Em nada a(o) diminui – bem pelo contrário, porque os grandes conhecem-se uns aos outros –, mas, uma sua funda compreensão, assimilação, envolve-nos também no Expressionismo alemão com o seu pathos – ao qual não pode, no caso, deixar de associar-se o belga James Ensor e as suas ilustrações da tragédia humana –, o Surrealismo com os seus insólito e incongruência, o Simbolismo e o Fauvismo com a força e a autonomia da cor, o…
Ora, tudo isto põe problemas de uma excepcional importância – e eu tenho que esclarecê-los, antes de mais nada para mim.
O preto humilde que foi pastor, criado de crianças, apanhador de bolas, criado de mesa (respigo da sua biografia) teve tempo suficiente para ler tanto sobre arte, como o que refiro acima, ou, afinal, porque a Vida não lho permitia, leu muito pouco ou quase nada e, parafraseando esse outro génio americano, que foi Edward Hopper, «eu nunca recebi influências de ninguém a não ser de mim próprio»? O catálogo responder-me-ia a estas perguntas? – Não sei. Tal como um dia deixei registado, escrevo após a exposição – e a leitura do catálogo fica para depois da escrita. Com todo o devido respeito, o meu critério é singelo: eu é que tenho que haver-me com os desafios.
Insiste-se – e com razão – nos horrores do Colonialismo. Mas é mister – com igual força – afirmar que, em África, do generoso ao sublime também houve de tudo. Dos mecenas que o ajudaram a tornar-se pintor profissional não posso deixar de mencionar o arquitecto Miranda Guedes (Pancho), de cuja elevada categoria me dei conta nos finais do transacto Julho quando, no Museu Berardo, vi uma exaustiva, digamos, exposição sobre a vida e obra deste mestre de Arquitectura. Aliás, do desdobrável trilingue da exposição (português, francês e inglês) tirou fotocópia em Agosto, na sua casa em Nauen, ali ao lado de Berlim e Potsdam, um professor universitário de Arquitectura, amigo, com obras um pouco por todo o Mundo.
Voltemos, porém, a Malangatana Valente Ngwenya. Se, não obstante a categoria do seu português – foi emocionante ter referido o afecto que o vincula à «língua de Camões», ainda por cima quando, em Praga, se impôs ao general Costa Gomes –, não leu nada sobre os grandes Mestres e as grandes correntes da pintura (Pancho Guedes cedeu-lhe a garagem e comprava-lhe «dois quadros, para que se pudesse manter», diz o opúsculo fornecido quando da inauguração da exposição), então trata-se de um génio avantajado a um supremo limite.
Breve: trata-se de alguém que, como uma perfeita esponja, absorveu tudo o que se passava ao seu lado e o plasmou depois para todos os tempos dos tempos (para assim me exprimir). Ou sentiu, por uma prodigiosa intuição a identidade do tempo e da realidade que lhe foi dado viver («a necessidade afia o engenho» e Heraclito diria que «o que se opõe conduz à unidade; e das coisas que diferem se produz a mais bela harmonia»), ou a sua carta astral o revela como um claro génio que é.
Esperei que já não tivesse mais assinaturas para fazer e, enquanto escrevia no catálogo adquirido e depois, tivemos uma breve conversa – que não foi maior porque estava absolutamente apertado para ir à casa de banho. Em resumo disse-lhe: não é improvável que escreva sobre o Mestre e não é improvável que um dia o visite em Moçambique. A consciência que tenho da minha riqueza postula que voltemos a encontrar-nos. É apenas questão de ver que prioridades se me apresentarão.
P.S. – O espartano, conquanto belo, espaço de exposições tem uma carência: um grande banco circular com costas e confortável, ao centro, a partir do qual, com óculos de ver ao longe, melhor se possa fruir e interiorizar o exposto. E o catálogo – não é crítica, mas mero registo – é muito caro. Há menos de um mês, em Trondheim, no seu Kunstmuseum, ali mesmo ao lado da catedral, por c. 30 euros adquiri eu um de Per Kirkeby e com capas rígidas. A opulenta Noruega tem outro nível de vida.
P.P.S. – O meu artigo aqui publicado na semana passada traz várias gralhas. Duas são pérfidas. Deve ler-se: o vexame que Sócrates sofreu quando das eleições europeias; e a garra do CDS no caso BPN.
Guarda, 19-IX-09
Por: J. A. Alves Ambrósio