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Tábua de Marés

“Gomorra” (Itália, 2008)

Realização: Mateo Garrone

Pequeno Auditório do TMG, 28 de Janeiro

“A ideia de trazer o exército para lutar contra eles é, para mim, superficial. É bom para a imagem do governo italiano, mas não vai fazer nada para corrigir o problema. Você tem que trabalhar a partir de dentro, para criar uma relação entre os cidadãos e as instituições de poder. A Camorra é muito forte, porque eles vivem lá, eles cresceram lá, eles estão perto de pessoas.” Estas são palavras do realizador deste filme icónico, numa entrevista concedida na altura da estreia. Já se está a ver quem são “eles”. E se dúvidas houvessem sobre o tema, esta obra notável acabaria com elas. Baseada na obra homónima do jornalista Roberto Saviano, actualmente com a cabeça a prémio, já foi galardoada com o Prémio Especial do Júri, em Cannes, bem como Melhor Filme Europeu de 2008, Melhor Realizador (Matteo Garrone), Melhor Actor (Toni Servillo), Melhor Argumento e Prémio Carlo di Palma da Melhor Fotografia, durante o Festival da Academia de Cinema Europeu, na sua 21ª edição.

Poder, dinheiro e sangue: esses são os “valores” que os residentes das províncias de Nápoles e Caserta têm de enfrentar todos os dias. Eis então uma radiografia particularmente crua das actividades da Camorra, com direito à escatologia que o tema oferece. Neste cenário são desenvolvidas cinco histórias de personagens, que vivem num mundo aparentemente imaginário, mas profundamente afogado na realidade. Inclui empresários sem escrúpulos, chefes mafiosos, capangas, mas também um contador, um costureiro, uma dona de casa e jovens que apenas procuram o seu lugar no mundo do crime. Mas aqui, ao invés do estereótipo Corleone, com amizades na polícia e no mundo empresarial e da política, os criminosos partem para a acção de um modo brutal, sem uma estratégia. Não se trata, portanto, da tradicional máfia siciliana, ou de suas ramificações, com o seu rígido controle familiar e código de honra peculiar. Com os napolitanos, a guerra é suja e empoeirada, como a própria Nápoles. A narrativa segue esse estilo sangrento. Ao invés da jornada clássica de ascensão e queda, tantas vezes orquestrada com perfeição por Scorsese, ou do personagem pacifista engolido por um mundo selvagem, vemos várias histórias sobrepostas como uma pirâmide num mundo caótico, imundo e que não dá trégua. Nesta perspectiva, a obra evoca melhor Os Infiltrados, ou a Cidade de Deus, do que Era Uma Vez na América ou O Padrinho.

Por outro lado, do ponto de vista formal, mais parece um thriller político de Costa Gavras, director de “Z” (1969), no melhor sentido que esta analogia pode sugerir. A técnica de filmagem é vibrante, lembrando muito o estilo documental e vívido de Paul Greengrass. A câmara de Garrone parece ter o dom da omnipresença, não hesitando em entrar nos locais mais inusitados, para conseguir os melhores enquadramentos (a cena da capa, um plano sequência mostrando um personagem, saindo de uma casa a meio de uma matança, é soberba); vários momentos de silêncio, feitos exclusivamente para incomodar; e uma banda sonora que só aparece em momentos importantes. Ou seja, Garrone filma com extrema sobriedade e um grande distanciamento. Dando assim à sua obra uma marca de documentário, cuja neutralidade assusta mais do que sossega as consciências. Que alinha a vibração de uma epopeia humana, sórdida é certo, mas nem por isso desmerecedora de um portofólio desta dimensão: a galeria aterrorizante de uma sociedade contaminada a todos os níveis pela máfia. Desde os “correios da droga” na base, até aos “empresários” intocáveis no topo. A um outro nível, a fotografia de Marco Onorato é igualmente de registar. Passando pelos cappos de esquina da rua ou do bairro. Por outro lado, o realizador optou por trabalhar apenas com actores com pouquíssima ou nenhuma experiência em cinema, o que traz para os ecrãs uma rara sobriedade gestual nas interpretações.

“La Farsemanouche” – Gipsy Jazz

(http://www.myspace.com/lapharsemanouche)

Guitarras: Alcides Miranda e Nuno Serra; Contrabaixo: Nuno Fernandes.

Teatro-Cine de Gouveia, 31 de Janeiro

O trio nasceu em 2006, sob a batuta de Alcides Miranda. Desde a primeira hora, assumiu-se como um epígono do mestre Django Reinhardt e como sonoridades inspiradoras a música festiva por ele composta e executada. Numa altura em que o jazz era sobretudo um estilo de vida frenético e de uma incrível modernidade. A música manouche, de origem cigana, já existia muito antes de Django. Mas foi este e Stéphane Grappelli quem lhe inocularam os característicos fraseados jazzisticos e a fixaram como um género de culto. Que originou uma escola de músicos tão notável quanto extensa. Com o virtuosismo da guitarra como marca inconfundível, é claro. Mas a linguagem notabilizou-se também por outras razões. Ao invés de outros tempos, este tipo musical goza de uma quase unanimidade na sua apreciação. As razões do sucesso popular do jazz manouche são múltiplas. Passam obrigatoriamente pelas mãos de uma lenda – o inevitável Reinhardt – mas também pelas qualidades intrínsecas deste género musical: uma ligação forte aos valores tradicionais, o desejo de experimentação de novas linguagens e novas linhas melódicas, a busca de originalidade, a vitalidade transbordante. Swing manouche, jazz manouche, jazz cigano… Tudo designações diferentes para a mesma realidade. Uma realidade que não deixa indiferente quem a escuta. E foi o aconteceu no Auditório de Gouveia. A receita musical trazida pelo trio funcionou às mil maravilhas. Numa sala bem composta e que, desde o primeiro minuto, aderiu à proposta musical deste grupo. Que foi alinhando os temas apresentados quase sem pausas. Numa cadência semelhante à da própria música. Uma sessão que decerto fez render alguns neófitos a esta sonoridade. Porém, quem já a conhecia, não ficou certamente desapontado.

Por: António Godinho Gil

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