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Plano para acabar de vez com a cultura

Para começar, lança-se a ideia de que é preciso ser-se culto para se ser “alguém”. Ser-se “culto” significa estar-se apto a responder aos inquéritos da “Caras” ou da “Lux”: qual foi a última exposição/peça de teatro/ que viu? E o último espectáculo? Que livro levaria para a ilha deserta? Qual é o seu restaurante favorito? E viagem? E filme? Mas não é só isto: também é preciso ser-se doutor. Nenhuma pessoa pode ser considerada culta sem uma licenciatura, qualquer que seja. Fernando Pessoa, por exemplo, não era uma pessoa culta: não só não tinha um curso superior, como, do ponto de vista dos “consumos culturais”, era apenas um literato, coisa que no início do século já parecia uma limitação, e que agora é, de facto, um atestado de menoridade cultural. Porque hoje a cultura é movimento, festa, agitação. E tem de ser “sinestésica”. Uma pessoa culta tem de saber vestir, e estar, e rir, e conversar sobre a moda e a política e o ambiente e a música e o design. Sobretudo o design, porque sem o design apropriado ninguém é entendido como culto.

Para lançar esta ideia, contacta-se uma agência de comunicação. E desenha-se uma estratégia de marquetingue, porque sem marquetingue não há ideia que vingue – isso até o literato Pessoa já tinha descoberto. Sim, a cultura exige uma estratégia e um plano. De preferência vindos de fora; a globalização é muito bonita para tema de conversa mas, na hora da verdade, um grupo de consultores estrangeiros, que já tenha vendido festas culturais nos países que dominam o império da cultura (e do dinheiro; as duas dimensões são inseparáveis) impressiona melhor. A alternativa, mais económica mas muito prestigiante, é encomendar um “estudo” a uma universidade, estrangeira ou, neste caso, de preferência, nacional. Dá um ar de seriedade e independência, com a vantagem, em se tratando de uma universidade portuguesa, de se captarem de imediato para a causa aquilo a que em bom português se chama “opinion makers”.

O plano, a estratégia e o estudo devem ser anunciados, explanados e demonstrados pelo menos uma vez por mês, e em “power point” – ou seja, num ecrã, com muitas cores e gráficos, porque a cultura contemporânea não existe sem luzes, cores, coisas a mexer. Um bom plano cultural é aquele que pretende sacudir tudo ao mesmo tempo – a palavra-chave é “interdisciplinaridade” (ou será “transdisciplinaridade”?). Juntar a dança com as artes plásticas e a fotografia e o cinema e a música e, enfim, a palavra. Um evento impactante tem de ter uma palavra de ordem, ou várias, mas curtas, e de preferência em inglês – porque essa é uma língua abençoadamente sintética e que facilita a exportação. E a cultura é para exportação.

A juventude é outra das características essenciais da cultura. Porque há necessidade de criar “novos públicos”, de “inovar”. De onde vem essa necessidade? Do nada – isso é que é maravilhoso: sermos capazes de, como diria Seinfeld, criar todo um programa a partir do “nada”, apenas movidos pela urgência de criar animação, vitalidade, acontecimentos, enfim, cultura. Uma cultura jovem mas de “inclusão”, democrática, que contemple aquilo a que se chama “multiplicidade dos olhares”. E que funcione como um eterno recomeço, a festa pela festa, o evento pelo evento. Que saiba misturar o gato e o sapato, o museu e a rua, a sardinha assada e o sushi. Uma cultura assim garante a tranquilidade do povo e o orgulho pátrio: no futebol como em qualquer outra área (e o futebol também é cultura, não esqueçamos), Portugal também sabe fazer grandes festivais.

Outra coisa seria presunção e perigo. Que outra coisa? Por exemplo, criar estruturas escolares sólidas para que as pessoas possam aprender a pensar e a imaginar livremente, de modo a fazerem as suas escolhas ou desenvolverem as suas capacidades. Investir em bibliotecas e arquivos. Apoiar os criadores e os seus projectos, os investigadores, a edição e divulgação de textos e autores essenciais para a formação de um pensamento crítico. Manuel Maria Carrilho lembrava a semana passada (“Diário de Notícias”, 27/11/2008) que “uma política da língua só pode ser uma política dos materiais em que ela se concretiza”. Mas claro que as palavras deste filósofo não interessam nada – sobretudo porque ele já provou, enquanto ministro da Cultura, que não há nada mais prático do que uma boa teoria. Fez demasiado, exigiu demasiado, conseguiu demasiada visibilidade exterior para o cinema e a literatura portugueses – por isso acabou por ser enviado para Paris. O povo quer-se anestesiado – e o dinheiro que se gasta em estudos e festas não se gasta a dar-lhe lenha para atear o lume da imaginação ou do pensamento.

Por: Inês Pedrosa

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