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O verdadeiro problema filosófico

atmosfera PORTÁTIL

Das notícias dos últimos dias ressalta aquela que confirma uma média de cinco tentativas de suicídio por semana na Covilhã. É entre os jovens adultos e os idosos que o suicídio acontece com mais frequência. Li também há tempos num jornal uma reportagem sobre suicídio juvenil. E na televisão, este tema foi também alvo de uma outra reportagem. Na verdade, razão tinha Miguel de Unamuno quando afirmou, no início do século XX, que o povo português é um povo de suicidas (a começar pelo exemplo dos poetas e escritores). O suicido é um tema deveras sério e complexo que merece uma reflexão aprofundada. O escritor Albert Camus dizia mesmo que só havia um problema importante para a filosofia tentar dar resposta: o suicídio – saber se a vida merece ou não ser vivida.

Nas artes em geral e no cinema em particular, o fenómeno suicida está bem representado. Mas está representado sobretudo no domínio da ficção. Isto porque se exige muito sangue frio e discernimento para fazer um documentário sobre o suicídio real. Mas foi isso que fez o cineasta Eric Steel com o controverso filme “A Ponte”, que aborda os 24 suicídios ocorridos, num só ano, na ponte Golden Gate de São Francisco. Até 2006 suicidaram-se desta ponte cerca de 1300 pessoas. A última estatística é de 2006: 36 suicídios e 70 tentativas. Um verdadeiro drama social. O que leva tanta gente desesperada a cometer suicídio deitando-se abaixo de uma das pontes mais belas do mundo? Que fascínio mórbido é este? O documentário “A Ponte” (à venda em DVD) do realizador Eric Steel, não dá respostas a nenhuma destas questões. Nem pretende fazê-lo. O que faz é mostrar, friamente mas com sensibilidade, o fenómeno suicida na ponte de São Francisco, sem interpretações morais, éticas ou outras. Steel filmou durante um ano (2004) a ponte 24 horas por dia, captando os 23 suicídios dos 24 ocorridos naquele ano. Uma média de um suicídio a cada 15 dias (fora as tentativas).

A ponte Golden Gate, construída em 1937, é um dos monumentos mais famosos dos EUA e foi considerada uma das Sete Maravilhas do Mundo Moderno. Continua a fascinar, hoje em dia, pela sua imponência e beleza. Porém, esta ponte ganhou fama mundial por esse motivo macabro, a alta taxa de suicídios. No filme “A Ponte” ficamos a saber que a maior parte dos que se suicidam sofrem de depressões e que a taxa de sobrevivência da queda na água é baixíssima (o documentário dá conta de um pungente testemunho de um jovem sobrevivente). Houve um caso ainda mais raro: o de uma mulher que sobreviveu à primeira tentativa; recuperou e voltou mais tarde a lançar-se da ponte. Desta vez, com consequências mortais. Ninguém consegue explicar a razão da ponte Golden Gate constituir a obra de engenharia do mundo que regista mais suicídios. Ninguém consegue estabelecer a relação entre o fascínio macabro da morte com a envolvência magnificente da ponte.

Dezenas de homens e mulheres, vindos de todos os pontos da América, continuam a deslocar-se até à ponte Golden Gate para pôr fim trágico às suas vidas. O documentário não esconde esta realidade difícil, antes revela-a pela objectiva da câmara de filmar tornando o filme numa experiência forte e sem concessões moralistas ou sensacionalistas. É um documentário que apela ao mais íntimo do ser humano, à nossa consciência social e nos interpela sobre o verdadeiro sentido da vida. Há quem considere o suicídio como um tabu social de embaraçosa discussão pública. Defendo o contrário: devemos aprender alguma coisa com o budismo e considerarmos a morte como fazendo parte natural da nossa última etapa da vida. E documentários como “A Ponte” ajudam a promover essa necessária e útil reflexão pública. Porque o suicídio é uma das principais causas de morte nas sociedades modernas. Seja em São Francisco, Tóquio, Lisboa ou Covilhã.

Por: Victor Afonso

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