Há uma imagem que não me abandona: a primeira, a que me atirou logo para dentro do que estava a ver. Essa imagem chamou-me como se dissesse o meu nome. Mas como se o dissesse no meio de milhões de outros nomes – e cada um fosse audível, reconhecível por aquele de quem é o rosto verbal. Quando se chega lá, a primeira coisa que nos abre os olhos é a dimensão de tudo, ao mesmo tempo desmedida e medida. E há uma elegância que habita as proporções, mas não se deixa cercar por elas. Quando cheguei à Cidade Proibida, em Pequim, o invisível tornou-se visível e o visível, invisível. Essa passagem de mundos diz-nos que tudo é a maqueta do todo! Cada degrau é a maqueta da escada; cada canteiro, a do jardim; cada sala, a do palácio; cada palácio, a da cidade dentro da cidade. E a cidade terrestre é a maqueta da cidade celeste, que é a maqueta do todo. Essa “mise en abyme” cósmica (o Universo como caixa chinesa) é o brasão de armas da China. Explicada pela sua geografia, explica a sua história, a sua cultura, a sua política. É, perante a vastidão do império e o número inumerável dos seus habitantes, a grande forma simbólica de apropriação e de domínio.
Agora, vejo-me a subir a grande escada. As minhas pernas cumprem um ritual exacto de correspondências: cada ascensão tem exterior e interior, é feita no espaço e no tempo. Vou subindo, e o fôlego alarga-se na proporção da vista. A primeira coisa que nos faz admirar é aquela concordância sem falhas de cores, de formas e de ritmos, que torna tudo o que não é aquilo desnecessário. Essa concordância é o modo mais abstracto e mais concreto de subtileza e refinamento que já vi, e torna os palácios reais do Ocidente pesados, desmesurados, excessivos, pomposos e frequentemente delirantes. Ali, há loucura. Mas há um rigor na loucura, que a faz fria, meticulosa, reflexiva e paciente, tornando-a uma forma ascensional de razão.
É o momento de entrar. Olho, olho, olho. Tudo se passa como se estivesse a assistir à rodagem de um filme e, ao mesmo tempo, a vê-lo no ecrã. Tudo parece eterno e instantâneo, definitivo e provisório, condicional e incondicional, necessário e contingente. Olho tudo com uma avidez viciada em que os sentidos se confundem, se fundem: os olhos cheiram, o nariz saboreia, os ouvidos tacteiam, a boca olha, as mãos ouvem. Saio e entro, vou e venho, parto e chego. Tudo prolifera, tudo se multiplica, mas tudo converge. Ali estão tronos, templos, tesouros, terraços, tectos, telhados. E pátios, galerias, leões, vestíbulos, dragões, varandas, jardins. Ali estão deuses, imperadores, príncipes, imperatrizes, cortesãos, burocratas, eunucos, concubinas, funcionários, calígrafos, artistas, sacerdotes, astrólogos, letrados, criados, guardas. E uma geometria de memórias, fantasmas, sombras, sonhos, espectros. Ali, protegendo-se da crueldade que os negava, os nomes das coisas eram “harmonia, tranquilidade, paz, longevidade, pureza, benevolência, quietude, sabedoria”. Ali vêem-se colecções infinitas de cerâmicas, de jades, de bronzes. E de máquinas do tempo, relógios vindos de todas as geografias, com os seus mecanismos mais sábios, perfeitos e exactos do que o pensamento exacto, perfeito e sábio de Confúcio.
Sai-se da Cidade Proibida e, por um contraste que faz clamor, o Palácio do Povo, a Praça de Tiananmen, o memorial onde está Mao Tsé-Tung embalsamado tornam-se primitivos e obscenos (em todos os sentidos, mas sobretudo no de “fora de cena”). Quem viu a Cidade Imperial e testemunhou este contraste bruto percebe que os Jogos Olímpicos de Pequim quiseram ser uma nova “Cidade Proibida” mostrada ao mundo – a Cidade Permitida. Mas foram também o Castelo Oriental do Barba Azul, onde entrámos levados pela televisão. No átrio desse castelo reina a hospitalidade e o sorriso. Lá dentro, todas as portas nos foram abertas. Todas, excepto uma: a velha porta proibida da nova Cidade Permitida. Aquela que oculta o quarto onde se amontoam os mortos, os torturados, os presos, os proscritos, os censurados. Pode ser que um dia a consigamos abrir. E oxalá que por essa abertura ninguém pague o preço que o Barba Azul costuma cobrar a quem desvenda o seu sinistro segredo…
Por: José Manuel dos Santos