Inferno
Jogos Olímpicos
A família está preocupada com a minha sanidade mental. Verdade que a minha sanidade é preocupação recorrente desde o berço. Mas a família acredita que sair à rua de pijama é um novo recorde pessoal. Não tenciono alarmar ninguém; mas o que existe de ofensivo num pijama tradicional – calça e casaco – impecavelmente limpo e tratado? O padeiro não se queixa. A senhora dos jornais também não. E, a este propósito, lembro sempre o caso do filósofo A.J. Ayer, que gostava de se passear assim pelos jardins de Oxford. Quando o viam passar, ninguém comentava o pijama. No limite, e segundo relatos, diziam simplesmente que Ayer poderia ter sido o maior filósofo da sua geração, mas que o sexo o perdera.
A minha família não se comove com estas histórias e aconselha, por enquanto, o uso de um sobretudo. Para “disfarçar”, dizem. Exactamente como as autoridades políticas chinesas, que lançaram uma campanha vigorosa para que os habitantes da capital não andem pela rua em certos preparos. De calças dobradas. De meias brancas. E de pijama, claro. E tudo isto porquê?
Porque as Olimpíadas têm pouco de jogos e tudo de política. Os jogos são uma forma de a China mostrar poderio ao mundo; e a conquista de medalhas, de preferência ultrapassando os Estados Unidos, a prova material desse poderio. Investindo 40 mil milhões de dólares em infra-estruturas; obrigando os habitantes a “disfarçar” saudáveis modos de vida; e fanatizando os seus atletas para que “batam” os adversários a todo o custo, os jogos são um prolongamento da guerra por outros meios.
E nós? Nós, portugueses, devíamos ter algum pudor em entrar nesta conversa. Quem quisesse ir, que fosse: sem representar coisa nenhuma, excepto o esforço e o talento individual. Infelizmente, estas modéstias não colhem; e parece que já há quem reclame uma “política nacional olímpica” capaz de “traçar objectivos” e alcançar não-sei-quantas medalhas em 2016. Por outras palavras: se os outros medem os seus falos, nós também devemos comprar uma fita métrica. Cheguem-me o pijama, por favor.
Purgatório
Rússia
Em Fevereiro passado, quando o Kosovo declarou unilateralmente a sua independência, o Ocidente democrático estalou de gozo e aplaudiu o gesto. A Guerra Fria terminou em 1991; mas a mentalidade que definiu o período continua a correr nas veias dos nossos democratas. Que o mesmo é dizer: para eles, tudo o que é mau para a Rússia é necessariamente bom para o Ocidente. Lembro que, à época, Cavaco Silva, um dos raros portugueses que ainda não vive no reino da fantasia, mostrou preocupação com a insanidade kosovar. Mas, perante os festejos de Washington e Bruxelas, até um céptico come e cala.
Infelizmente para os democratas, a Rússia não come nem cala. Aceitar a independência do Kosovo significava, para começar, que Moscovo estaria disposto a abandonar um aliado tradicional como a Sérvia. Mas significava, sobretudo e acima de tudo, que a Rússia aceitaria de bom grado o estatuto de inferioridade que o Ocidente lhe reservava em recorrentes confrontos diplomáticos e geoestratégicos.
Seis meses depois, começa a ser claro que o Ocidente jamais devia ter tratado da questão kosovar com tamanha cegueira. Como jamais devia ter prosseguido a sua política de humilhação à Rússia, prometendo a antigas repúblicas soviéticas (como a Ucrânia ou a Geórgia) insensatas adesões à União Europeia e à NATO. Quando os tanques russos invadem a Ossétia do Sul e pulverizam os nativos com particular brutalidade, eles não estão apenas a defender cidadãos russos, como o Kremlin alega. Estão a enviar um recado a Washington e a Bruxelas para que parem com o cerco.
Escusado será dizer que Washington e Bruxelas não têm qualquer legitimidade para falar contra a Rússia. Pior: a guerra em curso tem as impressões digitais do Ocidente em cada bala e cada cadáver. Primeiro, porque ninguém gosta de ser cercado. E, depois, porque o precedente kosovar abriu uma caixa que não se volta a fechar: aceitar a independência do Kosovo mas recusar iguais pretensões à Ossétia ou à Abkházia será um exercício de comédia. Grotesca.
Paraíso
Paris Hilton
Li há tempos um artigo notável sobre o fotógrafo Nick Ut. Quem é Ut? A melhor forma de apresentar o criador é relembrar uma das suas criaturas. Recuemos, então, 35 anos. E na foto mais famosa de Ut, vemos um grupo de crianças no Vietname a fugir dos bombardeamentos. E, no meio da estrada, com os braços abertos, uma rapariga de nove anos, totalmente despida, com uma expressão de choque e horror.
A foto correu mundo, Ut ganhou o Pulitzer respectivo. E depois foram 35 anos de silêncio, apenas quebrados por uma foto recentemente tirada. Temos uma nova rapariga. Temos também novo choro. Mas, desta vez, a personagem em questão não é uma criança vietnamita. É Paris Hilton, no banco traseiro de um carro policial, no dia em que soube que a cadeia esperava por ela devido a uma infracção qualquer. A foto voltou a correr o planeta e Nick Ut regressou, subitamente, ao reino dos vivos. Um Pulitzer não é de excluir.
E por que seria? Há 35 anos, a “seriedade” e a “brutalidade” do mundo exigiam testemunhas capazes de o mostrar a um auditório atento e disponível. Hoje, com as inevitáveis excepções do fanatismo islamita, não há grandes narrativas bélicas ou ideológicas para escrever ou fotografar. A História chegou ao seu termo e o Ocidente acredita que sim. E por isso consome, como nunca consumiu, as alegrias e as tristezas das “celebridades”. Neste capítulo, Paris Hilton não tem par: na sua vulgaridade sensual e sexual; na sua visível, festiva e até autocelebrada falta de massa encefálica; e num certo niilismo ético, estético e até espiritual, Hilton é um sucesso que as massas jamais ignoram ou esquecem.
Por isso pasmo com a atitude de John McCain em comparar Barack Obama a Paris Hilton – uma proeza a que Hilton já respondeu com vídeo inevitavelmente burlesco e oco como ela. E que fez sucesso entre os débeis. Inevitável. Na cabeça arcaica de McCain, chamar “celebridade” a Obama seria um desprestígio para o opositor. Pobre McCain: no século XXI, desprestígio é não ser uma.
Por: João Pereira Coutinho