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Aviso

Quando me levantei, olhei o céu e vi que ele traía o Verão: apagado, metálico, fatigado. E o mar estava sujo e fechado como um poço. No ontem daquele hoje tão triste, na face alta da noite cintilavam os astros puros a anunciar um amanhecer altivo. Mas tudo foi mudando. Pouco a pouco, as estrelas emudeceram, ausentaram-se, desistiram, falharam, deixando um rasto cego e uma vastidão vazia e escura. Um dia destes, no Inverno, é um acerto e uma aceitação. No Verão, este dia é um erro e uma sedição.

Quando olhei o céu, vi que a chuva ameaçava a nossa pouca vontade de a ter. Havia na atmosfera uma luminosidade viscosa, um cheiro oblíquo, um relâmpago baixo. Existia uma preguiça do sol, uma fuga do brilho, uma cobardia do clima, uma abdicação do tempo. Havia nódoas de sombra na luz e uma poeira de frio no ar. Como num Alcácer Quibir cósmico, o sol tentava avançar, mas era contido: acabou derrotado e desaparecido. Nesse hoje, havia um intervalo no calor, um tremor no dia, um Inverno de bolso dentro do Verão ardente.

Quando me levantei e vi o céu perdido para a alegria, pensei, aproximando-me daqueles que não renunciam inteiramente ao pensamento mágico, que assim é muitas vezes a vida: móvel, imprevista, mutável, inesperada, abrupta. Nós é que fazemos tudo para esquecer essa ameaça, tornando-a regular, reles e rotineira. Mas, a cada passo que damos sobre o chão da vida, ele pode abrir-se debaixo dos pés. É por aí que tantas vezes nos sumimos, perante os nossos olhos surpreendidos e assustados. Hoje, o dia estava nublado e tudo morria um pouco em nós. Era como se o céu fosse assim para nos lembrar que nada está para sempre dado, adquirido ou salvo. Aquelas nuvens longas, largas e lentas eram a bandeira de uma rendição, a pedra de armas de um palácio em ruínas.

Na Antiga Grécia, em Éfeso, na Jónia, seis séculos antes de Cristo, Heraclito, olhando o rio e o seu correr contínuo, declarou: “Tudo flui” e “nada permanece, senão a mudança”. Vendo que “a natureza gosta de se esconder”, falou da guerra e da paz dos opostos, do seu conflito e da sua unidade, afirmando que cada coisa é gerada no seu contrário: a morte na vida, o frio no calor, a beleza na fealdade, a doença na saúde, a fadiga no repouso, a saciedade na fome. Assim, o ser gera o devir, pois esse é o ser do ser. Heraclito travou um combate de contrários com Parménides, aquele que, em Eléia, escutando o silêncio que há por detrás do barulho, defendia que “o ser é e não muda”, pois “toda a mudança é ilusão”. Afinal, se for verdade aquilo em que Heraclito acreditava, talvez os dois, tão inversos um do outro, estivessem mais ligados do que pensavam.

Quando criam, os artistas fazem uma travessia, ora lenta, ora rápida, pelo mar dos opostos: passam da sombra à luz, do impreciso ao nítido, do informe à forma, do inconsciente ao consciente, do vulgar ao sublime, do esquecimento à memória. E sabem que o caminho que sobe também é o caminho que desce. A passagem inesperada do Verão ao Inverno e do Inverno ao Verão é uma alegoria e um aviso. Nessas passagens súbitas e nos seus desvãos habita a mais pesada leveza, a mais escura claridade, a mais veloz lentidão, a mais firme hesitação. Poucos como Camilo Pessanha captaram essas mudanças subtis, essas trocas de estação, esses sinais de passagem, esses clamores do silêncio, esses erros da natureza. Diz ele: “Floriram por engano as rosas bravas/ No Inverno veio o vento desfolhá-las…/ Em que cismas, meu bem? Porque me calas/ As vozes com que há pouco me enganavas?” E raros como Cesário Verde cobriram a distância entre os tempos e os espaços, num salto em que o Verão do mundo gera o Inverno da alma: “Foi quando em dois verões seguidamente a Febre/ E a Cólera também andaram na cidade,/ Que esta população, com um terror de lebre,/ Fugiu da capital como da tempestade.” E assim tudo se torna o que não é.

Por: José Manuel dos Santos

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