Pelo que se lê nos jornais parece que alguém está a pôr na agenda pública a questão do liberalismo. Ainda bem. Motivos não faltam. Por exemplo, a recente competição pela liderança no PSD ou as ondulações políticas dos que, hoje, querem a intervenção do Estado e, amanhã, já não a querem. Na verdade, o PSD continua com um problema de identidade ideológica. Ele será o que for o líder do momento. Liberal, se o líder for liberal. Popular, se o líder for popular. Social-democrata, um pouco, com qualquer líder, vista a sua matriz histórica e as características do nosso Estado Social. «Partido do Líder», é o que dele se poderá dizer quando o «Líder do Partido» possui carisma. A contínua mudança de líderes que se vem verificando confirma isto mesmo: o partido vagueia sem um líder a quem se entregue de corpo e alma. O endeusamento de Sá Carneiro é isto mesmo que representa: a busca de uma identidade. Mais do que um partido ideológico ele é um partido pessoal. O seu corpo doutrinário identifica-se com o pensamento do líder. Creio, por isso, que o seu nome mais genuíno é Partido Popular Democrático, onde o popular encontra no líder carismático a justa correspondência. Nisto mostra alguma modernidade e alguma adequação à moderna personalização da política. Mas uma coisa é certa: neste partido, o nome «social-democrata» não corresponde à coisa. E o embaraço da actual líder, no último debate entre os candidatos à liderança do PSD, a definir «social-democracia» é clara prova disso mesmo. Popular, sim, como um dia reconheceu Pacheco Pereira, a propósito de um meu artigo no «DN», com o título «PSD: o nome e a coisa». A questão da identidade ideológica continua a ser actual. Não sei é se uma referência liberal poderá resolver o problema. Por outro lado, numa sociedade como a portuguesa, continuam a ter enorme força tendências sociais que vêem no Estado, ao mesmo tempo, a fonte de todos os males e o remédio para todas as maleitas. Há nisto uma grave contradição: a velha «liberdade negativa» dos liberais, que queria libertar do sufoco do Estado, conjuga-se, aqui, com um estatismo proteccionista e economicamente desastroso. Os extremos tocam-se e conjugam-se!
Os conceitos têm, pois, de ser claros. O liberalismo distingue-se da social-democracia e do socialismo porque defende o primado da liberdade sobre a igualdade, enquanto estes defendem o primado da igualdade sobre a liberdade. Digo primado, não exclusividade, porque só os extremistas podem suprimir a liberdade em nome da igualdade e a igualdade em nome da liberdade. No campo dos que aderem sem reservas mentais à democracia representativa a grande questão está no doseamento da liberdade e da igualdade. Diria mesmo que a utopia dos sociais-democratas e socialistas reside na tentativa de obter um justo equilíbrio entre a igualdade e a liberdade (socialismo liberal). A igualdade de oportunidades só pode ser garantida por um Estado ao qual o cidadão cede um pouco da sua liberdade para garantir segurança, educação e saúde. Mas a verdade é que, ao contrário do que alguns editorialistas pensam, esta – que também poderia ser chamada «liberalismo de esquerda» ou «esquerda liberal» – não é uma visão própria dos anos oitenta do século passado, mas uma visão que já vem dos inícios do século XX. Trata-se do «socialismo liberal» ou do «liberal-socialismo». E há nomes para isso: Leonard Hobhouse, Carlo Rosselli, Aldo Capitini, Guido Calogero, Norberto Bobbio, activos militantes da causa. O «Partito d’Azione» italiano assumia esta tradição. A esta tendência se referia já Benedetto Croce e, mais recentemente, Perry Anderson. De resto, os liberais mais avançados evoluíram em grande parte para uma perspectiva socialista ou, pelo menos, social, valorizando as exigências sociais de igualdade. Assim, nesta lógica, não é tão evidente, como pretendia Rui Ramos, no «Público», (28.05.08), uma fractura estrutural entre estas duas visões do mundo, liberal e social-democrata, fontes de duas diferentes práticas de vida. Quando muito uma «convergência paralela»! Até porque a própria vida não é dicotómica. Entre liberalismo e esquerda não há fractura, como quer Rui Ramos, nem risco, como querem João Carlos Espada e José Manuel Fernandes. Diria mesmo que arriscado e fracturante é não os compatibilizar. Foi essa a opção de José Conde Rodrigues ao procurar, no seu «A política sem dogma» (2006), e em nome de um «liberalismo de esquerda», um equilíbrio produtivo entre liberdade e igualdade, na esteira de uma tradição que há muito se exprime em várias línguas, da italiana à inglesa.
Por: João de Almeida Santos