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Cartilha do Ouvidor

Jogo de Sombras

1. A figura do Ouvidor era, no antigo Reino, mais importante que a do Vice-Rei. Monarcas instáveis, chefes hesitantes e caudilhos desconfiados tornavam-se permeáveis aos mais gentis desembargadores (no antepassado do termo, ou seja, aqueles que tinham por missão afastar embargo ou estorvo), que tudo ouviam e que, de pena corrida, transmitiam o que ouviam, prestando-se também – e esse era o sumo poder que exerciam – a ajuizar acerca daquilo que ouviam. As possessões eram longínquas – e as nomeações de vice-reis, governadores, almirantes e restantes dignitários da graduação nobiliárquica eram feitas mais pela forçada observância de equilíbrios entre facções com putativos direitos adquiridos do que pela procura da qualidade ou pelo reconhecimento da competência. O Rei atendia-os (eram, afinal, os seus representantes legítimos) mas nada decidia sem o alvitre do Ouvidor. Conviviam, assim, dois poderes: um formal, institucional e representativo; e outro informal, subterrâneo e individualizado. É claro que este prevalecia sobre aquele, a menos que o informante acabasse desmascarado pelas próprias contradições ou pelo súbito pensar por si mesmo do destinatário dos reportes. No século XIX ficou famoso Miguel de Arriaga, Ouvidor das Índias, que atingiu o apogeu quando a Corte entrou em desnorte e rumou ao Brasil à mercê de uma Rainha alienada e de um Príncipe Regente assustadiço. Órfão de líderes e referências, o Reino tornou-se campo aberto para todo o tipo de praticantes da «filantropia». Arriaga aproveitou a sorte e passou a atender várias necessidades: médico, bombeiro, salvador de náufragos, provedor de defuntos, instrutor, intérprete – quando não feitor – de leis e julgador. Um precursor do Chico-esperto, que tudo sabe e de tudo fala. O Governador-geral das Índias ainda chegou a propor a sua destituição e prisão sob as acusações de conspiração e usurpação mas a História regista que D. João VI, o Rei Clemente, terá achado que não passaria de inveja, tendo-o até ressarcido com reais insígnias. Isto passou-se há menos de duzentos anos e explica em parte a nossa característica de país de brandos costumes.

2. Portugal tem hoje distâncias incomparavelmente menores e já não domina possessões além-mar. Mas nos recônditos lugares da República, como este que habitamos, subsistem os ouvidores – ou os decorrentes chicos-espertos. São para isso escolhidos e ensinados pelo chefe ou oferecem eles próprios os préstimos, exibindo, como aval, folhas de serviço que atravessam ciclos de poder e oposição. A tarefa é contar ao chefe o que se diz e o que se passa. Os mais habilitados ainda produzem uma tentativa de análise da informação recolhida. E uma plêiade de privilegiados está mesmo autorizada a propor acções, respostas e abordagens. Como é que fazem? Cingindo-nos aos de cá, ouvem a rádio e lêem a imprensa que o chefe não ouve nem lê. Alguns com menos que fazer recorrem também ao que ouvem nos cafés e nos empregos. Como é que passam a informação? Ao telefone e em encontros propositadamente causais. Como é que isto é possível? É porque nos tempos que correm também perduram chefes instáveis, hesitantes e desconfiados. Que tanto podem ter assento regular na outra ponta do país como na outra ponta da rua; na outra ponta do edifício ou na outra ponta do corredor. Como é que se distingue um chefe assim? Normalmente é através da frase-chave «não ouvi [ou não li] mas contaram-me» com que enrola a indignação, que antecede a rotineira evidência de que aquilo que lhe foi contado não corresponde sequer minimamente ao que foi dito nem escrito. Quer isto dizer que o ouvidor é, por princípio, um tolo que não mede consequências? Pelo contrário, é espertíssimo: estuda minuciosamente as inseguranças – as funcionais e as de espírito – do advertido a vai-se-lhes justapondo na tentativa de estabelecer laços de confiança e intimidade. O mais importante é manter viva a conjectura da existência de grupos de críticos e bandos de conspiradores. Porque não havendo calvário, nem ostracismo, nem proscrição, nem ameaça, não há padecente. E se não houver vítima (ou, pior, se o penitente começar por aí a circular, a ver, a ouvir, a perguntar e a pensar pela própria cabeça), que acontecerá ao ouvidor? Vários, nos últimos anos, conheceram o descrédito e o exílio. Alguns estão agora a tentar o regresso ao activo, em busca de ocupação sazonal. Outros julgam-se institucionalizados mas redobram o desempenho (intrigando, fazendo de vítimas da intriga que lançam e oferecendo consolo e mais intriga aos autênticos visados), na aflição de menear predizíeis ameaças ao próprio destino e ao da prole. E sobram os que se têm por mais ou menos incólumes porque vão conseguindo fazer jogo em vários tabuleiros, relatando valorosos feitos e protestando tangíveis ascendências – confiando sempre no efeito da própria eloquência e nunca no discernimento alheio (às vezes com demonstrada parte de razão).

3. Para que a teoria da conspiração ou a visão do calvário não esmaeçam na escassez de enredo, é necessário escorá-las sem demora numa asserção pública que facilite ao mentor (e ao padecente, antes que comece a revelar-se capaz de filtrar sozinho o que passa dos ouvidos e dos olhos para o raciocínio) a demonstração daquele aforismo, primordial até numa má trama, segundo o qual não há fumo sem fogo. Aí tem que entrar na história uma qualquer personagem que se preste a obséquios. Pode ser a protagonista de um dos romances obscenos de D. H. Lawrence. Ou a beldade de olhos doces da famosa canção de Carlos Mendes. Ou Laura Burney em fuga numa reposição na RTP Memória. Alguém, portanto, que anseie por se sentir útil e prezado, que procure uma reconciliação com a vida, que ande de mal com o passado e ressabiado com o presente (e com receio do futuro), que necessite afirmar sofregamente méritos que não persuadem – e em relação aos quais só encontra, paradoxalmente, condescendência e fiança naqueles que aveza trair. Mas ainda há destas figuras balzaquianas? Há. Encontram-se às vezes, imobilizadas na orla do caminho, lavadas em lágrimas, em trânsito para o efémero. Exibem um misto de cólera e auto-comiseração, por não terem conseguido ficar em nenhuma fotografia de sucesso; pela nunca mais descoberta da poética dos afectos numa rima que tranquilize o espírito e o corpo; pela angústia de sentir o tempo a passar, implacável, irreversível – e comparável. Mas logo após estes fugidios ensejos de arrependimento prestam-se a tudo, de maneira mais refinada do que antes do quebranto: à velhacaria; à heteronímia; à anomalia. Gente assim torna-se, pois, num tributo elementar à intriga: é quem se consagra ao frete – a qualquer frete – para dar «evidência» pública ao enredo. Isto, bem entendido, se tal coitada gente tiver credibilidade e moral para falar acerca de quem quer que seja. E, naturalmente, se souber escrever – no que se inclui o bom uso de termos e concordâncias e o rigor na pontuação. Quando não, é a risada geral. E então sim: o gueto dos amparados.

4. Moral da história: Quem vê mal vê sempre menos do que aquilo que há para ver; quem ouve mal ouve sempre mais do que aquilo que há para ouvir.

Por: Rui Isidro

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