Mais de 50 obras de arte contemporânea viajaram, esta semana, da Guarda até Lisboa porque António Piné doou a sua colecção particular, orçada em cerca de cinco milhões de euros, à Associação Nacional de Farmácias (ANF). Isto depois de mais de 12 anos à espera de um destino «várias vezes prometido» para o espólio.
Um desenho de Picasso será, porventura, a obra mais vistosa da colecção que o farmacêutico reuniu ao longo da vida. Mas há mais. Um acrílico de Paula Rego, de 1982, intitulado “Cegonhas”, telas de Vieira da Silva, Arpad Szènes, Júlio Pomar, Cargaleiro e Batarda ou uma escultura de Rui Chafes. A colecção de António Piné reúne peças dos mais importantes pintores e artistas plásticos portugueses do século XX. Enquanto desfolha os catálogos das suas obras, este apreciador de arte revela que começou a coleccionar por «casualidade». Impressionava-o a obra de Calouste Gulbenkian, «um homem de uma grandeza sem limites», apressa-se a dizer. Mais tarde, inspirou-se em Ricardo Espírito Santo e, «ultimamente», em António Champalimaud. «Três grandes figuras de referência na cultura e na saúde», sublinha. O primeiro quadro que adquiriu foi de Vieira da Silva. «Um atrevimento espantoso», assegura.
Mais tarde, vieram obras de Joaquim Rodrigo, Clavé, Domingos Pinho, Eduardo Batarda, Jorge Pinheiro, José de Guimarães, Júlio Pomar, Júlio Resende, Miró, Graça Morais ou Ana Vidigal. A lista é extensa e foi conquistada “aos bochechos”. «Despendia os tostões que tinha e que não tinha, porque comprei toda a arte com cheques pré-datados a longo prazo», revela. Agora com 77 anos, considera-se «um mecenas». E só depois de «muita ponderação» resolveu doar a colecção à ANF. A justificação é simples: «Atinge-se um limite em que se sente que a arte não é só nossa, não pode ser apenas para nosso próprio usufruto. A boa arte é para ser fruída pelo público. Tive-a sempre guardada e nunca tive, sequer, casa para a saborear devidamente, porque apenas uma grande galeria lhe poderia fazer jus», garante. De resto, António Piné defende que um bom coleccionador «nunca vende a arte que compra». A explicação é simples: «Tem-se-lhes tanto amor que os quadros não se desagarram de nós», sublinha.
Mais de 12 anos à espera da Câmara de Pinhel
A primeira opção de António Piné foi a sua terra natal, Pinhel. «Andei pelo menos 12 anos à espera, enquanto iam mudando os executivos camarários», recorda. O anterior presidente da Câmara chegou a prometer-lhe uma galeria num palacete na praça principal, que entretanto deveria ser recuperado. «A verdade é que o edifício ainda lá está, com o telhado a cair», lamenta. Do actual presidente chegou a garantia de que lhe seria concedida «uma sala com dignidade», mas desde então «cada vez que me vê foge de mim», ironiza. Também da Câmara da Guarda houve algumas promessas: «Chegou a ser feito um contacto há cerca de dois anos, prometeram-me um “grande projecto”, mas ainda hoje estou à espera», afirma. Assim, António Piné viu-se forçado a dar outro destino à sua colecção. «Com pena, porque sou um amante de Pinhel», assegura. Tudo indica que a exposição, que será inaugurada amanhã na sede da ANF, possa ser itinerante e o benemérito não exclui a possibilidade de «um regresso à Guarda». Ainda que temporário.
Ruas garante que não foi contactado
António Ruas, presidente da Câmara de Pinhel, garante que não foi contactado por António Piné no sentido de ser dado um destino à colecção. «As negociações começaram nos executivos anteriores, mas nunca chegaram a bom porto porque o senhor António Piné sempre mostrou alguma incerteza em relação ao espaço que poderia vir a acolher os quadros», esclarece. «Há seis anos, depois de ter tomado posse, conversámos e disse-lhe que tudo faria para que a colecção viesse para Pinhel», assegura o autarca, que ter afirma ter estado à espera de uma proposta. «Não se colocavam problemas de índole financeira ou técnica no acolhimento e manutenção das obras, porque isso nunca foi, sequer, discutido», adianta, acrescentando que «seria um grande esforço para a Câmara, mas, ainda assim, estávamos abertos a receber as obras e até poderíamos fazer uma candidatura ao QREN para ir buscar alguns apoios». Por isso, António Ruas diz-se «surpreendido» com a decisão do coleccionador, porque «decidiu sem antes ter ouvido Pinhel», lamenta.
Rosa Ramos