Publiquei, em 1999, na Editora Fenda, do meu amigo Vasco Santos, um livro sobre «Os Intelectuais e o Poder» (Lisboa, Fenda 1999). Como é natural, o caso Galileu – Galileu e a Santa Sé – teria de merecer algumas páginas (pp. 53-62). Afinal, tratava-se de uma complexa relação entre a ciência, a religião e o poder, com fortes implicações sobre o futuro da ciência moderna, vista a importância dos actores nela implicados. De resto, nesta altura, a famosa controvérsia já fora dada por finda, com as seguintes palavras de João Paulo II, em Setembro de 1989: «Galileo Galilei, digo, cuja obra científica, imprudentemente hostilizada no princípio, é agora por todos reconhecida como etapa essencial na metodologia de investigação e, em geral, no caminho para o conhecimento do mundo da natureza». Mas o Papa afirmara mais: «o problema que se puseram, pois, os teólogos da época foi o da compatibilidade entre o heliocentrismo e as Escrituras. Assim, a ciência nova, com os seus métodos e a liberdade de investigação que eles supõem, obrigava os teólogos a interrogarem-se sobre os seus próprios critérios de interpretação das Escrituras. A maior parte não o soube fazer. Paradoxalmente, Galileu, crente sincero, mostrou-se mais perspicaz sobre este ponto do que os seus adversários teólogos». Por outro lado, a «Pontificia Academia Scientiarum» publicaria, em 1992, o volume que integrava os textos da revisão do processo a Galileu e que se intitulava exactamente «Copernico, Galileo e la Chiesa. Fine della controversia (1820)» (Firenze, Leo S. Olschki Editore, 1992).
Do que é que se tratava, então? De ultrapassar de vez a sentença que condenou Galileu ao «cárcere formal», em 22 de Junho de 1633 e que rezava assim: «dizemos, pronunciamos, sentenciamos e declaramos que tu, Galileu, acima mencionado, pelas coisas deduzidas em processo e por ti confessadas como acima referido, te tornaste perante este S. Of. veemente suspeito de heresia, isto é, de teres mantido e acreditado doutrina falsa e contrária às divinas Escrituras: que o Sol seja centro da Terra e que não se mova de Oriente para Ocidente e que a Terra se mova e não seja centro do mundo».
A obra de Galileu em causa era o «Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo, ptolemaico e copernicano», terminada em 1630, e a questão era a da justificação da hipótese heliocêntrica, defendida por Copérnico em «As revoluções dos orbes celestes», de 1543.
O que estava em causa era, pois, a autoridade da Santa Sé perante a liberdade científica de Copérnico e de Galileu. Ora as palavras de João Paulo II já tinham, de algum modo, sido antecipadas pelo próprio Galileu quando, numa carta a Benedetto Castelli, dizia que se as Escrituras não podiam errar, já alguns dos seus intérpretes e comentadores podiam e de várias maneiras. De resto, também já na altura o famoso Cardeal Bellarmino intimara Foscarini e Galileu a considerarem a teoria copernicana como «mera hipótese matemática», assumindo-a somente «ex-suppositione», e defendera a conveniência de interpretar com circunspecção as passagens bíblicas que declaravam a Terra imóvel.
Na revisão do processo a Galileu, o Cardeal Paul Poupard viria a reconhecer o «erro subjectivo de juízo» da Santa Sé, propondo uma interpretação de compromisso, ao afirmar que a todos, no processo, deve ser reconhecida boa-fé, sendo o erro em parte explicável pela situação de transição que a astronomia estava a viver e pelo erro de uma interpretação literal das Escrituras.
Ora, no lapso de tempo que decorre entre as palavras de João Paulo II e a publicação da obra já referida, o então responsável – e hoje Papa Bento XVI – pela «Congregação para a doutrina da fé», Cardeal Joseph Ratzinger, faz uma conferência em Parma, em 1990, que parece vir pôr em causa a revisão do processo assumida pela própria Santa Sé. Apoiando-se em textos de Ernst Bloch e de Feyerabend, Ratzinger justifica a posição da Santa Sé de então com vários argumentos do relativismo metodológico, mas sobretudo com a assunção de uma espécie de humanismo geocêntrico, fazendo regredir o processo em relação à própria posição de João Paulo II e da «Pontifícia Academia Scientiarum».
Ora foi isto que esteve em causa na nova controvérsia da Universidade de Roma «La Sapienza». Foi a esta questão que regressaram alguns professores e alunos desta Universidade, levando o Vaticano a anular a lição inaugural de Bento XVI. E é daqui que deve repartir toda uma polémica que, todavia, já teve consequências de natureza política (religião/laicidade), diplomática (Vaticano/Governo italiano) e civilizacional (liberdade/intolerância).
Por: João de Almeida Santos