Sentada no cadeirão em frente do televisor, ali estava a olhá-lo enquanto ele falava. Já muito velha e surda, não conseguia ouvir as palavras acentuadas e por vezes indecisas, mas ficava prisioneira das mãos dele, encantada pelos seus gestos, ora minuciosos ora largos, também difusos e atirados como quem quer acertar em todos os alvos da terra. Um dia, perguntaram-lhe o que a fascinava tanto e ela respondeu: “O senhor veio ver-me e seria uma descortesia levantar-me e ir embora.” Era, afinal, esse o segredo de Vitorino Nemésio: ser próximo de cada um que o encontrava. Assim se tornou um ícone popular a falar de Baudelaire e de Sá de Miranda, do terceiro princípio da termodinâmica e de Niels Bohr, das sinestesias e de Virginia Woolf. E também da caça à baleia, do vinho do Pico, das viagens a Ouro Preto, da vizinha do quintal do lado. Com uma avidez serena, interessava-se por tudo. E de tudo falava em tão inesperados programas. Esses anos tardios foram os da grande glória pública para o escritor que começara cedo uma obra e a fez até ao fim: contos e romance, poemas e ensaios, crónicas e críticas, biografias e cartas. No que escreveu está presente a sua compulsiva imaginação verbal, a astúcia poética, o engenho narrativo, a cultura ilimitada. E há uma marca de água.
Para Nemésio, os Açores foram o alfa e o ómega: “Quando penso no mar, o mar regressa/ A certa forma que só teve em mim -/ Que onde ele acaba, o coração começa.” Mas, entre esse fim e esse princípio, o mundo existia para ser descoberto. Não havia homem mais curioso. Nem mais igual, mais livre, mais sonhador. E mais distraído, mais disperso, mais desordenado. Com uma personalidade que prevalecia sobre tudo o que fosse ou pudesse ser, ele era Vitorino Nemésio antes de ser professor, escritor, académico, conferencista, conversador. Era o anticonselheiro Acácio no país onde eles se sucedem e triunfam. Não havia cultura mais viva e pessoal do que a sua: uma cultura que escutava, observava, indagava, interpretava, recriava, lembrava, imaginava, evocava, reflectia. A sua última lição resume essa atitude intelectual e ética: é o grande depoimento de um homem, situado entre o passado e o futuro, que se apresenta perante si mesmo e perante aqueles que com ele fizeram o caminho. E o livro de poemas que então publicou, Limite de Idade, é o surpreendente testamento de quem entrava nos 70 anos maravilhado com o tempo, mas consciente de que ele estava a chegar ao fim. Por isso, termina: “Compro o silêncio que se me deve/ Por ter cumprido a palavra,/ Trabalhado nas palavras,/ E por elas merecido a terra leve.”
Sempre com pouco dinheiro e com medo de perder mesmo esse pouco, Vitorino Nemésio, de ar perdido, chagalliano, foi “ondoyant et divers”, como dizia o seu mestre Montaigne. Nunca deixou a vida de lado: até ao fim, tocou viola (pessimamente, mas isso que importa?), conversou, riu, leu, escreveu, viajou, admirou. E amou adolescentemente. Morreu, fez agora 30 anos, e pediu que, quando o seu corpo descesse à terra, os sinos repicassem em sinal de alegria. Assim aconteceu, e aquele momento parecia tocado da mesma irrealidade da sua vida…
Por: José Manuel dos Santos