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A democracia representativa e os seus inimigos

Razão e Região

Uma das palavras recorrentes na análise política é a palavra «partidocracia»: confiscação do mandato dos deputados pelos directórios partidários. Este desvio sempre foi considerado como um dos mais perversos desvios da democracia representativa. Entretanto, outros surgiram, como a «mediocracia»: a confiscação do mandato pelos «media». Ambos provocam uma «discrasia» da representação, uma espécie de anemia democrática, de enfraquecimento do poder político de origem electiva.

Interessa-me aqui, por razões de actualidade, o primeiro caso: a «partidocracia». Vejamos. Num sistema eleitoral proporcional como o português, onde do boletim de voto só constam as denominações, os símbolos e as siglas das formações políticas, não é difícil defender que o mandato político não pertence ao deputado. Alguns partidos defendem esta posição. Ora, a verdade é que um dos princípios básicos do sistema democrático representativo é o princípio do «mandato não imperativo», ou seja, o princípio da irrevogabilidade do mandato. Quem transfere soberania para os representantes não pode, depois, revogá-la, ainda que muitas vezes possa não estar de acordo com o que eles decidem. Por outro lado, o mandato é universal: os representantes decidem, em nome do povo, sobre todos os assuntos da Nação. Por sua vez, todos os eleitores se equivalem: «um homem, um voto». E a representação é pessoal: cada representante age de acordo com a sua consciência, sem vínculos. Os seus limites são os que resultam da própria instituição parlamentar a que pertence (e, naturalmente, os da lei). Nestes princípios reside o essencial da democracia. Mas, perguntar-se-á, qual é o papel dos partidos? Os partidos desempenham um papel decisivo, mas bem definido. No essencial, eles são os organizadores políticos da sociedade civil. Têm, essencialmente, uma função de propositura (hoje, já nem sequer exclusiva): formam e apresentam candidatos e candidaturas. Por outro lado, simplificam e facilitam o processo de decisão político-eleitoral, sinalizando ao eleitor as grandes opções políticas, ideológicas e programáticas. Em síntese, os partidos propõem as candidaturas e orientam o voto. Mas, enquanto organizações privadas (embora de interesse público), a sua função termina aqui, prosseguindo, depois, o processo político num plano institucional mais elevado: a esfera pública do Estado. O voto induz, assim, um «upgrade» institucional que transforma a dimensão privada em dimensão pública e institucional. Ou seja, os portadores directos da legitimidade que resulta do voto passam a ser os representantes (deputados) e não os proponentes (partidos). Poderia traduzir isto em linguagem filosófica, dizendo que uma coisa é a «génese», outra a «validade» (neste caso, a «legitimidade»).

É à luz de tudo isto que se deve ler a ruptura do PCP com Luísa Mesquita. Não interessa se houve compromissos assinados ou orais, porque a questão é mais profunda. O PCP aceita a democracia formal representativa, mas nunca a assumiu internamente porque não faz parte da sua história, do seu quadro conceptual e dos seus valores políticos. Para o PCP, os representantes são comissários. Não são deputados. E, por isso, os mandatos podem legitimamente ser revogados a cada momento. Para o PCP, a sociedade não é composta de indivíduos, mas sim de classes, camadas e grupos sociais. E, por isso, tem uma visão organicista da sociedade, pouco compatível com os pressupostos da democracia formal, uma vez que a lógica comunitária se sobrepõe à lógica individual. É por isso que a questão não pode ser reduzida aos termos de um compromisso. E, nisso, o PCP é coerente. Até porque nunca procurou iludir ninguém – muito menos os seus próprios dirigentes – sobre a sua visão da sociedade e da democracia.

Mas há, em tudo isto, um problema muito complicado. A lógica do comissariado e da revogabilidade dos mandatos pelos directórios partidários fere dois princípios fundamentais da democracia e do Estado de Direito: o princípio da transparência e o princípio da autonomia institucional. É que, nesta lógica, quem revoga um mandato que foi conferido pelo voto e pelo povo é um directório que o eleitor não conhece, não votou e não pode controlar (ao contrário dos candidatos, que são conhecidos, votados e, portanto, controlados), ao mesmo tempo que uma função institucional e pública (mandato parlamentar) é revogada por um poder privado (partido). Em suma, paradoxalmente, o mandato acaba por ser revogado não por quem o confere, mas por quem o propõe. Estamos, assim, perante uma autêntica confiscação privada de um mandato conferido pelo povo. E é por isso que a lei a impede.

Por: João de Almeida Santos

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