Arquivo

O conde

Ele sabia que parar é ser apanhado. Por isso, andava. De manhã, era visto em Santos a olhar o comboio que passava com a sua pressa pontual. À tarde, já estava em Benfica a ver montras de lojas onde nada existe que se possa comprar. Andava muito a pé e os seus passos tinham a forma do que não sabe para onde vai. Ubíquo e disperso, eu encontrava-o por todo o lado. Saudava-me com uma cortesia cerimoniosa e lenta. E na sua fala, que tropeçava nos “erres” como um cavalo toca nos obstáculos, havia ressonâncias antigas.

Dizia que era conde, embora se soubesse que a família tinha uma taberna nos Anjos. Com dinheiro quase nenhum, preferia passar fome a correr o risco de ser visto a entrar para uma tasca, em cujo balcão a mãe, plebeiamente, vendia os melhores pastéis de bacalhau do continente europeu. Encomendara o brasão a um heraldista, que lhe disse no acto de entrega das armas de nobreza: “Tenho feito mais condes e marqueses do que os reis de Portugal todos juntos.” Mandou gravar o brasão na pedra de um anel que virava para nós quando dizia “a minha prima Fabíola”, pois, entretanto, convencera-se que era parente da Rainha dos Belgas.

Antes do 25 de Abril, fora contínuo no Palácio Foz, de onde saiu por desviar resmas de papel de máquina para fins a que não estavam destinadas. Logo a seguir à Revolução, fez dessa fútil causa de desonra um nobre motivo político para a expulsão. Dizia que fora despedido por ter dado o papel à candidatura de Humberto Delgado à Presidência da República. Conde por convicção, queria-o ser também por afinidade. Filiou-se no PPM e tornou-se uma espécie de funcionário faz-tudo da sede: tirava cafés, atendia telefones, contava boatos. Um dia em que houve mais uma movimentação militar, recebeu a comunicação social, que queria saber a reacção dos monárquicos ao acontecimento. Sem dirigentes por perto, fez ele declarações à imprensa. Perante ouvidos perplexos, exigiu que fosse decretado o estado de sítio, acompanhado do recolher obrigatório, e declarou ter informações seguras de que Portugal ia ser expulso da NATO e de que a invasão americana estava em marcha. No dia seguinte, andava outra vez a percorrer as ruas, com passos largos como exclamações…

Tinha uma conversa cheia de sussurros, segredos e subentendidos. Sempre de fato escuro e gasto, camisa branca e gravata com brasões, conseguiu um dia, aproveitando a confusão gerada pela coincidência do seu nome com o de um influente analista político, ser recebido por um importante e atónito membro do Governo do Bloco Central, ao qual propôs usar as suas relações com a Casa Real inglesa para que Portugal passasse a fornecer fardamento ao Exército britânico.

Citava de cor uma passagem do Testamento Político de D. Luís da Cunha ao futuro Rei D. José I: “Deus não pôs os ceptros nas mãos dos príncipes para que descansem, senão para trabalharem no bom governo dos seus reinos.” Fumava como quem respira e morreu como viveu. Fez dos seus dias um constante conto fantástico: deu à vida o que a vida não lhe dava. No hospital, recomendou às enfermeiras que, mal o seu óbito se verificasse, o comunicassem ao Rei de Espanha. Espero que lhe tenham feito a vontade.

Por: José Manuel dos Santos

Sobre o autor

Leave a Reply