Ausente do país no dia da trasladação dos restos mortais de Aquilino Ribeiro, empreendida com a oportuna e possível solenidade, e correndo hoje o risco de me revelar jornalisticamente incorrecto, insisto em recolocar os temas da persistência do nome, e da duração da obra. Figura de intransponível referência para duas gerações, Aquilino não terá recebido o que merece, mesmo votada ao esterco a baboseira de um insulto à qualidade da sua escrita, largada por um dos habituais contabilistas do talento que não possuem. E a honra da sua memória que deveria ter sido operada por eventos menos ostentatórios, mas de certeza mais afáveis ao autor de ‘A Casa Grande de Romarigães’, continuará por algum tempo ainda a clamar por melhor defesa.
A geração a que pertenço, e que se situa agora entre os feiticeiros da tribo e os guerreiros recém-circuncisos, acostumou-se a erigir um punhado de vultos, e a atribuir-lhe, o que constitui recorrente impulso da juventude, a indiscutível eternidade. Ferreira de Castro alcandorava-se como campeão de vendas, e como o português mais traduzido, o que necessariamente lhe valeria a irritação da crítica pátria, desvalorizando-o por ‘escrever mal’. Mas incluíam-se também no friso José Régio e Miguel Torga, divididos ambos entre prosa e poesia, e zurzidíssimos pelos recenseadores, e logo depois Fernando Namora, um ‘comercial’, malquisto pelos bem-pensantes, e Carlos de Oliveira, mais ou menos fustigado até à publicação em 1978 de ‘Finisterra’, título que uma ensaísta profetizou que bloquearia a nossa literatura ao longo dos cinquenta anos seguintes. Os marginais, aqueles que não contribuíam para engordar a bolsa dos editores, como Irene Lisboa e Vitorino Nemésio, quando não intervinham motivos políticos, suscitavam entretanto geral aplauso nas colunas da imprensa.
O que sobeja destes maiores, e daquilo que produziram, que nos esclareça acerca da sobrevivência da sua obra, ou sequer da lembrança do seu nome? Não será fácil averiguá-lo num país onde escasseiam os estudos de sociologia da literatura, e onde falta a investigação na área da sociologia da leitura. Mas sabe-se que, exceptuando-se um mínimo de casos, o de Régio, o de Torga, ou o de Irene Lisboa, objectos de planos editoriais, na sua quase globalidade mais destinados a estudiosos do que a “tutti quanti”, a maciça bibliografia dos citados acha-se inencontrável nas prateleiras das livrarias.
Transferidas para o Panteão Nacional, as ossadas de Aquilino Ribeiro irão fazer companhia às de Almeida Garrett, de João de Deus, de Teófilo Braga, e de Guerra Junqueiro, todos eles depositários dessa estima sem afecto, segregada pelos amantes da monumentalidade, indiferentes às razões da inteligência, ou da imaginação. E é por regra no falso respeito aos fetiches que se apoia a homenagem farfalhuda, de costas deliberadamente voltadas à continuidade da vida, isto sobretudo quando esta exige um esforço de alma, ou um risco de capitais. Ter-se-á por isso festejado um onomástico, ou terá descido a segunda pedra tumular sobre um esplêndido batalhador das letras?
Conheci um coleccionador de livros e curiosidades que por alturas de uma outra trasladação, a de Florbela Espanca, do cemitério de Matosinhos para o de Vila Viçosa, havendo subornado um coveiro, conseguiu que lhe fossem parar às mãos uns quantos ossinhos da sonetista, nos quais se engastavam farrapos de um vestido de brocado branco. Retirava-os de uma caixa de cartão que guardava num armário por baixo do televisor, e exibia-os com um orgulho a que não faltava o meio sorriso do divertimento. Os restos mortais de Aquilino, a quem me sinto ligado pelo mais duradouro dos convívios, o que resulta do encontro na página impressa, esses pelo menos ninguém os vê.
Por: Mário Cláudio